domingo, 19 de março de 2006
A Bíblia de Satanás
IMDB | In The Mouth Of Madness
John Carpenter: In the Mouth of Madness
Wikipedia | In The Mouth of Madness
John Carpenter é cineasta de carreira incerta. Carpenter é o cineasta responsável por clássicos do cinema de terror como Halloween, The Fog ou The Thing, mas também é perfeitamente capaz de fazer filmes de segunda categoria. Basta ver o Vampires ou o Ghosts of Mars para se perceber que o estatuto de Carpenter como um dos mestres do cinema de terror é, no mínimo, incerto. O que se espera sempre de Carpenter são filmes de entretenimento com nuances de crítica social, e aí Carpenter não desaponta. Os seus filmes contém sempre mensagens quase subliminares sobre a nossa sociedade. Dois exemplos típicos são The Fog, uma história de terror em que a américa suburbana é confrontada com os segredos violentos do seu passado, ou They Live!, fábula cómico-paranóica de ficção científica em que uma invasão de extraterrestres se manifesta através uma sociedade hiper-economicista onde o lucro reina - e os cidadãos mais afluentes são, na realidade, extraterrestres cuja missão interplanetária é simplesmente a exploração exaustiva dos recursos dos planetas com fins meramente lucrativos (uma sociedade hiper-economicista virada para o lucro? Se trocarmos alienígenas por globalização descreve bem o nosso planeta...).
A Bíblia de Satanás, In The Mouth Of Madness no seu título original, mostra Carpenter como um mestre que domina perfeitamente o seu campo. In The Mouth Of Madness é um scherzo, uma brincadeira de Carpenter com todas as ideias que povoam o cinema de terror. John Trent, um cínico e descrente investigador de seguros, é contratado por uma editora para localizar Sutter Cane, o seu mais bem sucedido autor de romances de terror. Trent suspeita de fraude publicitária para atrair atenções sobre o novo livro de Cane. As televisões mostram os fãs enraivecidos de Cane a destruirem livrarias, desesperados por o seu novo livro ainda não ter chegado aos escaparates. A leitura das obras de Sutter Cane parece despertar alucinações nas mentes dos seus leitores, e Trent, ao ler as obras de Cane para tentar perceber o sucesso do escritor, acaba por sofrer de alucinações.
A sua maior alucinação, que de acordo com o cânone dos filmes de terror, está sempre a oscilar entre a noção de alucinação e a noção de realidade, é viajar para a Nova Inglaterra e encontrar Hobb's End, a cidadezinha onde se passa o enredo de Hobb's End Horror, o penúltimo romance de Cane. Hobb's End é a prototípica localidade de conto de terror. Uma cidadezinha isolada e pacata, onde muitas coisas estranhas se passam, Hobb's End é também o local onde Sutter Cane se refugia para escrever aquele que literalmente será o seu último livro. Nas entranhas de uma igreja possuída por forças demoníacas, Cane escreve incessantemente na máquina de escrever, conjurando pesadelos inomináveis cuja leitura levará a que a realidade se altere, conjurando assim o regresso dos Antigos, criaturas monstruosas que se refugiaram nos negros abismos da loucura que está para além do tempo.
In The Mouth Of Madness termina num apocalise, com Trent a escapar de um manicómio destruído para uma paisagem desoladora de detritos de uma sociedade destruída.
O que torna In The Mouth Of Madness um filme interessante são as várias nuances e sub-textos presentes no filme. In The Mouth Of Madness é, antes de mais, um jogo de referências literárias e cinematográficas que homenageia e brinca com o género de terror. As referências às obras de Stephen King e H. P. Lovecraft, dois dos pilares do romance de terror, são pervasivas - desde o enredo passado numa cidadezinha amaldiçoada da Nova Inglaterra (referências óbvias às criações de Lovecraft, Innsmouth, Arkham ou Dunwich) onde os protagonistas se hospedam no Hotel Pickman (uma referência que mistura o Overlook Hotel do Shining de Stephen King com Pickman, uma personagem lovecraftiana), à violência visceral de algumas cenas, claramente inspiradas na violência visceral que está presente em grande parte da obra de King, até ao conceito dos antigos, criaturas monstruosas que estão para lá do tempo, pedra basilar dos mitos de Cthulhu nas obras de Lovecraft (numa das cenas finais do filme até há um Cthulhuzinho que se mexe no meio dos monstros - quem sabe, sabe e não confunde um cefalópode com tentáculos monstruosos). Espalhadas por todo o filme encontramos cenas óbvias de filmes de terror. Machados ensanguentados que os protagonistas não conseguem ver, cenas de destruição a fazer lembrar os filmes de zombies, todo um ar apocalíptico que questiona a noção de realidade, que remete para outra das pedras basilares do terror: os estados de fluxo entre duas realidades, a nossa e a realidade de pesadelo que o viver dos acontecimentos de terro nos leva a pensar que é a nossa realidade.
In The Mouth Of Madness também brinca com a indústria do terror, alimentada por resmas de livros de bolso de qualidade duvidosa que fornecem grandes lucros às editoras especializadas, cujo trabalho não passa pela promoção da literatura mas sim pela realização de negociatas sobre livros que muitas vezes ainda não foram escritos. Para que o portal se abra e os antigos invadam o nosso mundo, é necessário que a obra de Cane seja lida. Cada novo leitor é um novo crente, e é essa a força que abre o portal. Para aqueles que não lêem... há sempre a versão cinematográfica. Outra ideia com que In The Mouth Of Madness brinca é com a famosa influência do entretenimento sobre as mentes. No filme, a obra de Cane é acusada de provocar doenças mentais aos seus leitores - da mesma forma como regularmente acusamos livros, filmes e jogos de computador de incutirem comportamentos violentos nas crianças, por exemplo.
Um dos pormenores mais curiosos em In The Mouth Of Madness é que o filme não se leva a sério. Isso pode ser percebido pela forma descontraída como os actores principais representam - Sam Neil, no papel de John Trent, limita-se a passear pelo filme com um sorriso sardónico, e Jurgen Prochnöw, no papel de Sutter Cane, confere ao seu personagem uma dimensão apocalíptica profundamente camp que faria inveja a um Vincent Price. Impossívelmente, este desempenho errático dos actores funciona perfeitamente. Retira ao filme a seriedade típica do filme de terror, e permite-nos perceber os sub-textos que Carpenter coloca no seu filme.
In The Mouth Of Madness é, pois, uma divertida homenagem ao terror, quer literário quer cinematográfico. O filme é um jogo de referências, que vão desdoe o slasher ao zombie, sem esquecer os elegantes horrores conjurados por Lovecraft, o grande mestre do horror.