sexta-feira, 24 de fevereiro de 2006
Pormenor
Confesso que estava nervoso. A ideia era boa, mas eu não tinha materiais nem tempo para a concretizar. Mesmo assim, não consigo dizer que não aos meus alunos quando eles me pedem ajuda. Para além disso, há que admirar a coragem de uma aluna que para participar num concurso de carnaval organizado pelos alunos decidiu pedir ajuda ao professor de EVT, em vez de comprar um daqueles fatinhos todos bonitinhos que é só tirar do saco e começar a fingir que se é princesa ou cowboy. A aluna também não estava interessada em ser princesa de conto de fadas; queria ser, simplesmente, astronauta.
A criação do fato foi um hino ao desenrasque e aos milagres que os professores fazem em pouco tempo, sem materiais decentes com que trabalhar. Caixas de cartão que estavam a aproximar-se perigosamente do ponto de reciclagem foram diligentemente cortadas em tiras, que vergadas com ajuda de fita-cola se transformaram no capacete e no reservatório de oxigénio. Sacos de lixo de 100 litro foram devidamente esquartejados para fornecerem material para vestir o corpo da aluna. Metros e metros de folha de alumínio foram colados aos sacos de lixo. Chegado o final, o vestir do fato revelou todas as falhas: se as tiras de alumínio coladas no corpo se aguentaram, as dos braços e das pernas rápidamente se desfizeram. Toca a improvisar: folhas de alumínio enroladas nos braços e nas pernas, e fita-cola a fingir que são braçadeiras e juntas do fato. Um cinto imaginado com um pedaço de cartão mais sugestivo, umas insígnias da Nasa impressas a preto e branco (a impressora laser da sala de directores de turma não tem toner de cores), e já está.
Eu estava angustiado. Ajudar a fazer o fatinho é uma brincadeira, mas uma brincadeira séria. Não estava com vontade de a expor ao desolador ridículo que os comentários de uma multidão de crianças são capazes. Sabem, aqueles risinhos humilhantes e aquelas piadas que nunca mais são esquecidas. Os colegas da aluna, contentes, encorajavam-na e diziam-lhe que aquele era o melhor fato do concurso. Estavam orgulhosos da ajuda que prestaram, e um pouquinho invejosos por não terem um fato como aquele. Eu reservava-me. Temia o pior: uma multidão de miudos a rir-se à gargalhada do fato ridículo que parecia uma sandes enrolada em aluminio, incapaz de superar a beleza dos fatos de princesa, brancas-de-neve, bébés e marafonas que agraciavam a competição. Desejei boa sorte à aluna, com uma pontinha de pena por não a ir poder ver desfilar (sempre tinha sido trabalho meu), e fui atender a encarregada de educação de um daqueles alunos que ao fim de sete anos ainda não percebeu o que é que anda a fazer na escola.
A reunião foi interrompida por uma funcionária. "Professor, estão lá fora uns alunos a gritar por si. Parece que uma aluna sua ganhou o concurso de máscaras. Uma que ia de astronauta".
(Por óbvias razões de privacidade, não reproduzo aqui o fato da aluna. Vai só um pormenor.)