segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

Crónicas Marcianas

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Site Oficial de Ray Bradbury
The Martian Chronicles
The Martian Chronicles
E-Nigma | O Mundo Marciano

O livro que vos trago hoje é um livro culpado. As Crónicas Marcianas foram as responsáveis pela minha grande paixão pela literatura de ficção científica. Não é para menos. Ler As Crónicas Marcianas é apaixonar-se, é sonhar com nostalgias e futuros imaginados, é elevar o espírito a dimensões oníricas.

As Crónicas Marcianas são uma colectânea pouco estruturada de contos de Ray Bradbury que abordam um tema clássico da ficção científica, a colonização de Marte. Sendo ficção científica clássica, As Crónicas Marcianas não descrevem uma colonização cientificamente correcta. No mundo literário de Bradbury, Marte não é um rochedo de atmosfera esparsa e inóspita colonizável apenas através de um gigântico esforço de hardware. Bradbury imagina Marte mais na linha literária de H. G. Wells e de Edgar Rice Burroughs - um planeta semelhante ao nosso, habitado por seres que não são fundamentalmente muito diferentes de nós. Mas se os marcianos de Wells são inescrutávelmente malévolos e Burroughs transplanta para Marte aventuras típicas da exploração de África, Bradbury escolheu um sentido muito diferente.

O planeta Marte de Ray Bradbury é um espaço onírico, quase surreal, onde percepções alteradas coexistem com exotismos sonhadores e nostalgias ternurentas. A colonização de Marte é uma colonização sonhadora, onde se reflecte o que há de melhor e de pior na humanidade. Os aventureiros que colonizam Marte são sonhadores inveterados, que procuram novos horizontes; os marcianos são elegantes fiapos oníricos de uma civilização milenar que se encontra num gentil e elegante declineo.

Tendo escrito nos anos 50, Bradbury espelha n'As Crónicas Marcianas as preocupações típicas da época. Isso explica a prevalência de temas como a crítica à colonização imperialista, o racismo social e a possibilidade de suicídio civilizacional através da guerra nuclear. De facto, a leitura do livro apenas insiste em Marte. Retirem-lhes os foguetões, as alusões a outro planeta e às viagens interplanetárias e as páginas do livro reflectem uma américa profunda, a américa do Midwest, colonizada por sonhadores e homens ganaciosos que se instalarm sobre os pueblos de uma civilização índia antiga e decadente.

As Crónicas Marcianas descrevem um arco de acontecimentos iniciado com a aterragem da primeira expedição até ao abandono de Marte pelos colonos terrestres que regressam a um planeta natal devastado pelas bombas atómicas. A coexistência com os marcianos não é pacífica - os primeiros contactos, das primeiras expedições, são desastrosos, e terminam com a elegante aniquilação dos exploradores terrestres. Bradbury imagina os marcianos como sendo detentores de poderes telepáticos, o que se traduz em visões perfeitamente surreais: a primeira expedição terrestre é aniquilada por um marido marciano, ciumento dos devaneios com astronautas sonhados pela sua mulher. A segunda expedição é aniquilada como uma forma de eutanásia - os marcianos acreditam que a tripulação e a nave terrestre não passam de uma elaborada alucinação incurável. É particularmente curiosa a passagem em que os astronautas, após serem recebidos indiferentemente pelos marcianos, que parecem pouco impressionados com a viagem de milhões de quilómetros que afirmam fazer, são recebidos em triunfo por marcianos... que vivem num manicómio. A terceira expedição é eliminada com requintes oníricos - os exploradores humanos, ao aterrarem em Marte, descobrem que chegaram a uma versão da terra dos anos vinte, a uma cidadezinha do interior americana povoada pelos seus entes queridos já falecidos. Encantados com a companhia dos seus pais, avós e irmãos, não se apercebem que cairam numa armadilha marciana, e são eliminados por aqueles que criam ser seus familiares. Só a quarta expedição consegue obter sucesso - os marcianos haviam sido eliminados pela mais insidiosa das doenças, o sarampo, uma doença que na Terra mal faz mal a uma criança mas que em Marte aniquilou uma elegante civilização milenar.

Uma nota curiosa no livro é o tom de respeito de Bradbury sobre os marcianos. Todas as passagens que os referem fazem sempre questão de sublinhar a elegância e o exotismo da antiga civilização marciana. Não se trata aqui do white man's burden aplicado ao espaço, da cultura terrestre como superior a todas as outras, com o fardo de espalhar a sua cultura e civilização perante as culturas inferiores residentes nas novas fronteiras. Não se riam - o white man's burden foi uma das grandes justificações para o colonialismo europeu, e sob formas camufladas ainda continua a ser justificação para aventureirismos militares disfarçados de incentivo à progressão da democracia - vejam a principal justificação para a invasão do Iraque, por exemplo. Este tom multicultural do romance de Bradbury é algo de perfeitamente inédito para uma época em que a maior parte da ficção científica publicada tinha a ver com insípidas aventuras espaciais ao melhor estilo western intergaláctico.

O livro termina com os novos marcianos - habitantes da terra que fugiram de um planeta avassalado pela loucura e destruído pelas bombas atómicas, a reclamarem como suas as antigas cidades marcianas, abandonando a cultura terrestre como mensagem de esperança num futuro mais perfeito.

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É certo que Marte está sempre presente. É o planeta mais estudado do sistema solar. As missões exploratórias seguem-se, trazendo resultados e imagens espectaculares. Sabemos que a única possibilidade de vida em marte poderá ser microbiana, com um poderá muito incerto. Mas a influênica d'As Crónicas Marcianas faz-me sonhar. Sempre que contemplo alguma imagem da superfície marciana, nasce a esperança de que o rover não chegou ao local certo; de que a máquina fotográfica está apontada para o local errado; que por detrás da colina pedregosa se esconde uma elegante cidade marciana espiralada em direcção ao céu avermelhado, à beira de um mar antigo sulcado por exóticas gôndolas tripuladas por marcianos de inescrutáveis máscaras douradas.