terça-feira, 24 de janeiro de 2006

Ponto de Intersecção

É o pensamento habitual das noites de insónia e dos comentários desabafados. Estamos cada vez pior. A nossa sociedade, o nosso mundo, parece dirigir-se para um profundo abismo. Não há salvação possível para o nosso negro destino, para a nossa aniquilação como espécie, para a nossa sociedade que de dia para dia decai para um barbarismo primário.

Mas será mesmo assim? Estamos assim tão involuídos? O nosso progresso traduz-se assim tão automáticamente em decadência? Na verdade, a humanidade, como espécie e como civilização, parece estar num píncaro. Nunca, em toda a história da humanidade, a prosperidade foi tão generalizada como nestes tempos contemporâneos. O nosso nível de vida é vastamente superior ao das hordas de humanidade que nos precederam. Hoje, um pulinho de automóvel ao supermercado traz-nos à mesa iguarias apenas sonhadas pelos nobres e reis de antanho. O nosso acesso à cultura é invejável: pela primeira vez na história da humanidade, populações inteiras são alfabetizadas. A quantidade de doutoures é tão elevada que já nos parece excessiva. A quantidade de livros e outras publicações disponíveis em simples papelarias faria inveja aos bibliotecários de Alexandria. As nossas casas rivalizam em confortos com os palácios feéricos dos duques e príncipes dos séculos passados. Recordem-se que por detrás de todo o luxo e da talha dourada, os palácios não tinham àgua canalizada. Electricidade. Calor, excepto o que vinha das lareiras. Vidros nas janelas, simples vidros, eram um luxo apenas acessível aos mais milionários. A música era um luxo. As viagens uma raridade - aliás, só se viajava por extrema necessidade, ou então como soldado num qualquer exército. Durante eras incontáveis, milhões de seres humanos viveram vidas difíceis e esquecidas em casas que pouco melhores eram que barracas, alimentando-se de raízes e alguma rara carne, imóveis e agrilhoados aos barrancos ou lezírias onde passavam todos os dias da sua curta vida. O que me leva a pensar na saúde. Acham mesmo que estamos assim tão decadentes? Certamente que a vossa memória histórica não se recorda dos tempos em que era normal uma mulher ter dez ou mais filhos, apenas porque sabia que a maior parte deles não sobreviveria ao seu primeiro ano de vida. Ou em que os homens enviuvavam quando as suas mulheres morriam ao dar à luz os seus filhos. Uma simples infecção era uma passagem assegurada até à campa. A esperança média de vida não se media em sete ou mais décadas: anciãos eram os que sobreviviam até aos cinquenta anos. As nossas conquistas, os nossos modos de vida, são vastamente superiores a tudo aquilo que grandes civilizações históricas conseguiram obter. Hoje vivemos num mundo perfeitamente global; os filósofos gregos desconheciam o que existiam para além das colunas de hércules e dos desertos persas.

Se é verdade que nunca na história da humanidade estivemos tão avançados, também é verdade que resta muito a fazer. Grande parte da humanidade ainda vive na mais abjecta pobreza, tornada ainda mais horripilante pelas condições e tecnologias que hoje sabemos existirem para minorar estes problemas. Se é verdade que a maioria da humanidade hoje goza de direitos civis e legais inimigináveis em eras anteriores, também muito ainda há a fazer pela construção de uma sociedade verdadeiramente justa. Se é verdade que a nossa tecnologia nos permite viver num mundo que desafia futurismos, repleto de uma verdadeira cornucópia de maravilhas mecânicas e digitais, também é verdade que enfrentamos uma encruzilhada ambiental que pode aniquilar o nosso mundo e a nossa civilização. Não podemos ficar de braços cruzados, gozando irresponsávelmente as maravilhas da nossa civilização, e ignorar o nosso futuro, enquanto espécie e civilização. Se é verdade que nunca na história da humanidade o avanço foi tão grande, também é verdade que nunca os perigos foram tão grandes. Pensar nos monstros que a tecnologia gerou e nas desigualdades que ainda imperam é abrir a mente a pensamentos aterradores. Nâo lhes podemos virar costas. Não podemos para de lutar por futuros melhores.

Da próxima vez que se irritarem e pensarem como estamos cada vez pior, lembrem-se do seguinte: um camponês romano, um faraó egípcio, um viking, um nobre medieval, um industrialista do século XIX, não tiveram acesso, nem sequer imaginaram uma ínfima parte do que temos à nossa disposição. Mas se queremos um futuro melhor, temos de lutar por ele.