quarta-feira, 18 de janeiro de 2006

O Couraçado Potemkin



Wikipedia | Battleship Potemkin
IMDB | Battleship Potemkin (1925)
Internet Archive | Battleship Potemkin

É possível que um filme mudo, a preto e branco, a poucos anos do seu centenário, ainda pareça aos nossos olhos habituados a voos inimagináveis de efeitos especiais e imagens alucinantes como um filme estéticamente revolucionário? Passados oitenta anos sobre a sua realização, O Couraçado Potemkin ainda é um filme técnicamente revolucionário por excelência. O uso inovador, para a época, de técnicas de montagem dinâmicas e ângulos de câmara pouco convencionais ainda hoje nos parece tão revolucionário como o foi em 1925 - um elogio à visão inovadora de Sergei Eisenstein, um tributo à época revolucionária nas artes que foram os anos loucos entre 1900 e 1930, e um olhar triste sobre uma ideia de cinema. As inovações estilísticas de que um filme como O Couraçado Potemkin foi pioneiro hoje só parecem ser aproveitadas por videoclips e segmentos publicitários. O cinema, tal como hoje o entendemos, está demasiado interligado com a noção de espectáculo, de história contada, e de efeito especial, para que a visualização de obras que meditem sobre a própria linguagem cinematográfica seja bem aceite. A história do filme parece ter sempre a primazia sobre a linguagem cinematográfica. São raros os filmes que coloquem a linguagem cinematográfica acima dos constrangimentos do argumento.

O Couraçado Potemkin é também um dos maiores filmes de propaganda da história. Filmado na União Soviética em 1925, o filme narra a história da sublevação da tripulação de um navio da marinha russa, em 1905. Os marinheiros, revoltados contra os constantes abusos, maus tratos, e com a comida apodrecida que lhes era dada, tomaram conta do navio Potemkin e rumaram ao porto de Odessa, esperando catalizar uma revolução contra o tzarismo. No entanto, Odessa é ocupada por tropas tzaristas, o que obriga os marinheiros amotinados a furar o cerco da frota russa. Milagrosamente, o navio não é afundado - contra as ordens dos seus comandantes, os marinheiros da frota russa recusam-se a disparar contra os seus camaradas, e o Potemkin ruma em direcção à Roménia, onde a sua tripulação se exila. Após a revolução de 1917, os marinheiros exilados e o navio são devolvidos à União Soviética, tendo este episódio ficado na memória colectiva soviética como um exemplo de coragem face à tirania das classes opressoras da rússa pré-sovietizada.

Este aspecto propagandista impediu que o filme fosse amplamente divulgado. Aclamado na união Soviética, no resto do mundo só foi visto por audiências selectas. Goebbels, o infame ministro nazi da propaganda, chamou a O Couraçado Potemkin um filme sem paralelo - tão eficaz, em termos de propaganda, que qualquer espectador da época sairia do cinema como um bolchevique após ver o filme. Este aspeco parece-nos quase ridículo, neste início de novo século, em que as loucuras ideológicas do século XX são memórias históricas



O filme é composto por cinco segmentos, escritos de maneira simples, como boa propaganda que é, para que a audiência se identifique ideológicamente com o filme. No primeiro segmento, Homens e vermes, somos introduzidos à violência brutal que o oficialato do Potemkin exerce sobre a sua tripulação, chegando ao ponto de os forçar a comer carne apodrecida, repleta de vermes. Não há meios termos - os oficiais são violentos e sanguinários, os marinheiros suportam estóicamente os suplícios (como convém aos heróis do povo). No segundo segmento, Drama no convés, após a recusa dos marinheiros em comer a comida podre o capitão do navio reúne toda a tripulação no convés e ameaça executar aqueles que se recusam a comer. Como exemplo, decide mandar executar um grupo de marinheiros. No momento fulcral, em que o pelotão de fuzilamento aponta os fuzis e se prepara para disparar, Vakulinchuk, um simples marinheiro (e a única personagem identificável do filme), dá o grito de revolta. Os marinheiros revoltam-se e tomam conta do Potemkine, mas Vakulinchuk é morto durante a revolta. O terceiro segmento, Os mortos clamam, passa-se no porto de Odessa, onde o cadáver de Vakulinchuk, herói da revolução, incita os habitantes de Odessa a revoltarem-se contra o domínio tzarista. É um momento de esperança ao melhor estilo comunista, em que proletários, camponeses, donas de casa e operários se juntam aos camaradas militares, lutando por um mundo melhor.



O segmento seguinte, A escadaria de odessa, é o momento mais brilhante de um filme já de si brilhante, e possívelmente um dos momentos cinemáticos mais brilhantes da história do cinema. Com Odessa prestes a revoltar-se, os soldados tzaristas ocupam Odessa. Essa ocupação é simbolizada através de uma escadaria, que os implacáveis soldados tzaristas descem, marchando e disparando sobre os civis. A cena é aterrorizante: uma massa indistinta de uniformes brancos, botas pretas e fuzis sempre apontados desce, ignorando os apelos lancinantes da multidão. Eisenstein enche estas cenas de homems a morrer sob as balas dos soldados cossacos, mas demora-se, implacável, nas mulheres e crianças mortas pelas balas. O objectivo é óbvio - mostrar a violêcia sanguinária e a injustiça de que eram capazes os tzaristas. Toda a cena está montada com uma justaposição rápida de várias imagens - os soldados marcham, os soldados disparam, ferem crianças, as mães imploram com os soldados que, implacáveis, as fuzilam com as crianças ao colo. No meio de tudo isto, um carrinho de bébé desce descontroladamente a escadaria em direcção à cavalaria cossaca que está a dizimar a multidão mais abaixo. A mãe está morta, deixando-nos incrédulos perante um governo que não hesita em eliminar mulheres e crianças. Ainda hoje, mercê das imagens implacáveis e da sua montagem dinâmica, que nos faz sentir mesmo no centro da acção, na escadaria, alvejados pelos soldados, esta cena comove e revolta. Como pormenor curioso, é de notar que os soldados tzarista envergam uniformes brancos - em 1925, a União Soviética ainda se estava a tentar livrar dos últimos resquícios do tzarismo, e as forças leais à monarquia russa eram conhecidas como Russos Brancos.



No final do filme, o segmento Confronto com a frota traz-nos o final possível. Desmoralizados perante o massacre de Odessa, os marinheiros decidem enfrentar a frota russa. Todo o filme parece dirigir-se a um climáxe sangrento - as máquinas, inexoráveis, levam o navio cada vez mais para as proximidades dos canhões da frota russa. Mas no último momento, a mensagem de revolta espalha-se, e os marinheiros da frota recusam-se a disparar sobre o Potemkin. O Potemkin, acompanhado por um contratorpedeiro também amotinado, ruma em direcção ao oceano, como uma mensagem de esperança sobre a revolução soviética.

O brilhantismo do filme está na técnica de montagem, fortemente influenciada pelos cubistas e pelos construtivistas russos. O filme é dinâmico, as imagens estão em constante justaposição e movimento. O ritmo é rápido, imparável e inexorável. Os sentidos das imagens são explorados até à exaustão, colocando-nos num constante estado de inquietação. É impossível ver este filme de forma distante; toda a mestria de Eisenstein nos obriga a estabeler uma relação de proximidade com as imagens no ecrã.

Mas não se fiem nas minhas palavras. O Internet Archive tem este filme disponível para download. Vejam, com os vossos olhos, porque é que O Couraçado Potemkin é um dos melhores filmes da história do cinema.