quinta-feira, 29 de dezembro de 2005
Loura Platinada
Blonde Platine, escrito e desenhado por Adrian Tomine, Éditions du Seuil, 2003
Adrian Tomine
Time | Adrian Tomine: Summer Blonde
Gendered Visions of Graphic Fiction: Adrian Tomine's Summer Blonde
Adrian Tomine: Summer Blonde
Vasculhando nas prateleiras da secção de BD da Fnac, encontrei esta pequena pérola dos comics, traduzida para francês. A secção de BD da Fnac é muito enganadora. Parece ter muita coisa, muitos livros, mas quando reparamos mais de perto, vemos que a grande maioria não passa das novidades editoriais francesas, e alguns comics mais empoeirados. As novidades da Devir também ocupam um espaço respeitável, mas nem pensem em procurar um título que tenha mais de seis meses no mercado. Quando a Fnac surgiu no mercado português, estabeleceu-se como um ponto de referência onde se poderiam encontrar livros que de outra forma nunca chegariam a portugal. Foi assim que consegui coleccionar o fabuloso Sandman de Gaiman, num dos muitos exemplos de boa banda desenhada que a abertura da Fnac possibilitou. Mas agora, anos depois, a Fnac decaiu num laxismo típico de supermercado de livros. Muita coisa, mas muito pouca diversidade, e uma inexistência de obras com datas de publicação pouco recentes, a menos que estejam muito esquecidas nas prateleiras. É esta atitude que explica a pouca importância dada à BD de qualidade. O destaque é dado aos albuns franceses, versão gaulesa dos comics industriais americanos. As tiras humorísticas de jornais coligidas em livros também têm grande destaque. E para encontrarem livros mais... esotéricos, autores como Katchor ou Tomine, experiências gráficas, edições independentes e formatos diferentes, os clientes devem agachar-se, quase beijando o chão, e vasculhar os caixotes empoeirados que estão dedicados a estes livros.
Já que estou numa de recados, resmungos e publicidades gratuitas, deixo aqui o apelo: a Devir tem-se notabilizado pela qualidade e pela variedade dos seus lançamentos de BD, arriscando até introduzir no mercado português autores de culto que são quase desconhecidos, mas muito bem vindos. Nessa veia, para quando a tradução portuguesa de autores como Tomine, Peter Kuper, Ben Katchor, e mais Daniel Clowes (a edição de Mundo Fantasma deixou sabor a pouco)?
Mas já estou a divergir. Todos estes resmungos estão a ocupar um espaço que eu queria ver dedicado à obra extraordinária de Adrian Tomine. Blonde Platine, Summer Blonde no original, é um livro que reune quatro histórias publicadas originalmente no comic Optic Nerve, um comic influente e inovador que Tomine publica desde os seus dezasseis anos (nada como génios precoces).
Blonde Platine é composto por quatro contos em BD. No primeiro, Alter Ego, somos introduzidos ao mundo de um escritor que luta débilmente para escrever o seu segundo livro. Enquanto busca inspiração, envolve-se com a irmã mais nova de uma antiga paixão platónica dos tempos do liceu. Ao fazê-lo, perde todos aqueles que o rodeiam. Perde a namorada e os seus amigos mais íntimos, e a simples noção de ter algum caso com a jovem rapariga deixa-o revoltado. Ele não procurava sexo, ou uma nova relação. Apenas se deixou enredar por reminiscências nostálgicas, aqueles pensamentos do tipo "o que é que teria acontecido se...". No segundo conto, Blonde Platine, somos introduzidos ao mundo semi-inocente de um individuo desajustado que tem uma fixação por uma rapariga que trabalha numa loja de postais. Esta rapariga, longe de ser inocente, anda de relação em relação, namorando com vários homens ao mesmo tempo, procurando neles apenas o que lhe interessa. A situação degrada-se quando começa a namorar o vizinho do lado do seu admirador da loja de postais, um músico sem talento, que só se interessa pelas mulheres até as ter levado para a cama duas ou três vezes. Em Escapade Hawaienne, o terceiro conto, somos introduzidos ao mundo solitário de uma rapariga descendente de chineses que vive na califórnia para escapar a uma mãe demasiado crítica da vida da filha e a uma irmã em ajustada que conseguiu o sucesso com que os seus pais sonhavam, um bom emprego e uma vida suburbana. Despedida do emprego como operadora num centro de chamadas telefónicas por ter ousado identificar um cliente famoso, passa o seu tempo solitáriamente livre a fazer chamadas telefónicas para um telefone público, insultando aqueles que, incautos, pegam no auscultador. Paradoxalmente, é assim que conhece um rapaz simpático, com quem inicia um relacionamento. Quando o conto termina, ela recorda-se de férias que passou no Hawai enquanto garota, enquanto espera que aquele que poderá ser o seu novo namorado volte a falar com ela (nunca saberemos se o fez). Finalmente, Alerte a la Bombe é conto sobre adolescentes desajustados que sobrevivem no conformismo da vida do liceu. Um rapaz que todos suspeitam de ser homosseuxual e uma rapariga cujas carências emocionais a levam a ser a rapariga fácil utilizada por todos os rapazes que tentam ser machos para satisfazer os seus desejos sexuais acabam por se agregar, tornando-se amigos íntimos. No final do conto, a intimidade parece resvalar para uma relação mais profunda, mas o livro termina com o olhar paralizado do rapaz enquanto abraça a sua amiga semi-nua.
Definir a obra de Tomine não é tarefa fácil. A maioria das estórias são sobre alguma coisa, algum acontecimento que provocou mudanças, viragens, tragédias, apocalipses, alegrias. Mas a obra de Tomine não olha nessa direcção; antes, olha para uma espécie de não-espaço, o espaço dos pequenos acontecimentos quase sem valor que caracterizam a vida quotidiana. No fundo, são esses pequenos acontecimentos que moldam a nossa vida, que nos influenciam e que ditam o nosso comportamento. Este é um espaço que Tomine partilha com Raymond Carver, embora em campos literários diferentes (Carver é romancista), ou na obra pictórica de Edward Hopper. Nada de realismos fantásticos; trata-se aqui do realismo simples e desalentado dos pequenos pensamentos quotidianos.
Pelo conteúdo das suas histórias, Tomine é considerado um autor deprimente. Tomine concentra-se na fase da vida entre os dezoito e os trinta anos, concentra-se na busca de emoções perdidas por parte de personagens que nunca se ajustaram perfeitamente às exigências sociais que lhes são impostas. Também não cria histórias com princípios definidos e finais catárticos, felizes ou infelizes. Antes, retrata momentos aleatórios da vida das personagens, fazendo dos leitores uns voyeurs que entram na vida de uma personagem num qualquer momento e saem quando o autor quer, nunca nos deixando perceber a conclusão dos acontecimentos da vida dos personagens. Por outro lado, no seu trabalho Tomine parece colocar-nos frente a um espelho, em que através dos fait-divers que moldam a vida das suas personagens nos leva a reflectir sobre a nossa própria vida, e sobre os pequenos factores que nos levaram a percorrer os caminhos que a nossa vida percorre.
Em termos estéticos, Tomine é senhor de um traço de grande precisão. O seu desenho é realista, bastante dado a detalhes, e espartilha as vinhetas sobre a prancha de uma forma muito rigorosa, o que nos distancia ainda mais das personagens e das situações que retrata.
Blonde Platine é um livro incontornável que merecia uma boa edição em português, para divulgar entre nós a obra de um autor de BD contemporânea que é ao mesmo tempo rigoroso, inquietante e nostálgico.