terça-feira, 15 de novembro de 2005

Ubik



Site Oficial de P. K. Dick
Wikipedia | Philip K. Dick
Ubik
The Gnostic World View
Editorial Presença | Ubik

Ubik, de Philip K. Dick.

Começa de forma insuspeita. Um grupo de pessoas com poderes anti-psiónicos é atraída a uma cilada na lua, onde é assassinada numa explosão. Mas no futuro, a morte não é o fim da vida. Existe um estado de transição, a semi-vida, que permite manter um ente querido vivo e semi-consciente durante um punhado de horas. Os entes falecidos são criogénicamente conservados em moratórios, estranha contração de moratória com mortuário. Se as horas de semi-vida forem bem geridas, a morte pode ser adiada durante longos anos.

As vítimas não se apercebem que estão em semi-vida. Pensam que foi o seu patraão a morrer assassinado, e só desconfiam de que algo de estranho se passa quando o seu mundo, a realidade, parece começar a desfazer-se. A história retrocede, o dinheiro com a data mais recente perde o valor, a tecnologia retrocede no tempo. Os modernos apartamentos desvanecenm-se em casas antigas. O mundo futuro metamorfoseia-se no mundo passado. Um a um, cada um dos anti-psiónicos dissolve-se neste regresso foçado ao passado. Contra a dissolução, apenas a salvação que vem num frasco de spray, o spray ubik - use-o, e verá como tudo à sua volta se torna mais brilhante.

Ubik é um livro que nos apanha de forma insuspeita. Na sua génese, temos algumas das ideias clássicas de Philip K. Dick que funcionavam como modelo para escrever contos de ficção científica - um futuro convenientemente próximo, por volta dos anos 90 (Dick escrevia na década de 60), embora sem grandes transformações. Poderes psiónicos - telepatas, telequinéticos e precognitivos e o seu oposto. E viagens rotineiras à lua, a marte e a outros locais no sistema solar. São elementos comuns nos contos de Dick, e este não desenvolvia um grande esforço de caracterização dos futuros permitidos pela ficção científica. O cerne da obra de Dick está nos conceitos de percepção e de realidade, e na forma como factores externos (as chamadas voltas da vida, ou apocalipses nucleares) e factores internos (psicoses, neuroses, esfacelamentos mentais) podem alterar essa percepção da realidade.

Peguemos no conceito de semi-vida. Sabemos que os nossos entes queridos estão mortos, criogénicamente congelados. Como entender, então, essa zona cinzenta que separa as suas consciências da morte definitiva? Hoje, a comparação óbvia seria o conceito de realidade virtual. Para Dick, fortemente influenciado pela filosofia gnóstica e pelo budismo, o conceito aproxima-se mais de uma realidade artificial, dependente das percepções de quem a vive. E quem a vive não se consegue aperceber da irrealidade da realidade que o cerca. Agravemos este sentimento de irrealidade com um sentimento de emergência: a semi-vida não é eterna, é apenas uma fase de transição até à morte final (inspirado pelo Livro Tibetano dos Mortos, Dock fala aqui de reencarnação, mas não elabora muito sobre o assunto).

A realidade virtual da semi-vida dos anti-psiónicos assassinados funciona em três vértices: a dissolução da realidade e a sua metamorfose em algo de progressivamente imperfeito é causada pela interferência de um outro residente do moratório, alguem que morreu muito jovem e que usa os poderes latentes na sua mente para prolongar a sua semi-vida devorando, literalmente as semi-vidas dos outros falecidos conservados no moratório. Para o fazer, tem de criar uma realidade convincente, enquanto suga a semi-vida das suas vítimas. Esse jovem, conhecido por Jory, assume o papel de um demiurgo - um semi-deus malévolo, que de acordo com a filosofia gnóstica, é o responsável pela verdadeira criação do mundo (muitos dos gnósticos tiveram um fim triste nas piras de chamas da inquisição). Apenas duas forças o conseguem combater - a mulher do patrão dos anti-psiónicos, que assume o papel da sabedoria que ilumina, esclarece e permite ver o demiurgo como aquilo que ele verdadeiramente é - criador de uma realidade imperfeita condenada à inexistência (a sophia da filosofia gnóstica) e uma força messiânica que consegue inverter o processo de dissolução da mente, convenientemente apresentada quer sob a forma de um spray maravilhoso quer sob a forma de banha da cobra. Este messias numa lata é um toque de humor sarcástico aos leitores de um mundo modelado pela mitologia judaico-cristã, dependente da ideia do messias como salvador da humanidade.

Philip K. Dick foi um dos mais conturbados e curiosos escritores de ficção científica dos anos 60. A sua prosa raramente tinha como tema central os temas que associamos à ficção científica. Em Dick, as naves espaciais, os apocalipses nucleares (Dick escrevia nos anos 60, época de hipotéticas aniquilações planetárias debaixo de cogumelos nucleares), os extra-terrestres e os outros planetas são meros cenários e acessórios por onde se movem personagens que questionam constantemente a sua realidade, a sua mente e a sua humanidade.

O que é a realidade? Como podemos nós afirmar com toda a certeza, que a nossa realidade é real? Estas são questões capazes de lançar a melhor das mentes numa desesperante espiral que enlouquece o cérebro. Dick soube espelhá-las na sua prosa como ninguém.

(A minha edição de ubik é uma clássica da colecção de ficção científica de bolso da Europa América - o número 6 da colecção... a Editorial Presença, na sua excelente colecção de Ficção Científica, editou recentemente o livro, que aconselho vivamente, como já devem ter percebido pelo simples facto de ter escrito sobre ele.)