terça-feira, 4 de outubro de 2005

The Sandman


os infinitos

Wikipedia | The Sandman
Neil Gaiman
Wikipedia | Seven


A nova leitura que estou a fazer ao The Sandman de Neil Gaiman está a fazer fervilhar dentro da minha cabeça uma série de observações que eu ainda não consegui organizar num todo coerente. The Sandman é um comic complexo, profundo, cujas histórias não progridem linearmente; antes organizam-se em complexas teias, de cuja profundidade só nos apercebemos quando, a páginas e a volumes tantos, surge uma referência a um personagem aparecido muito atrás, ou uma situação que julgávamos resolvida ainda influencia o destino dos personagens.

Talvez a melhor forma de organizar os meus pensamentos sobre The Sandman é começar pelo início. Começar, talvez, por esboçar a estranha mitologia criada por Gaiman.

The Sandman é Morpheus, Oneiros, Dream, uma encarnação dos sonhos da humanidade. Em conjunto com os seus sete irmãos, Dream personifica sete grandes conceitos subjacentes à vida, quer seja humana ou não (há sugestões tantalizadoras, colocadas tentadoramente perante os nossos olhos, mas logo a seguir escondidas, de que estas entidades antecedem a humanidade). Estas sete entidades, os Infintos (The Endless) personificam as grandes ideias que manipulam a nossa vida.

Destiny, o Destino, é a primeira grande personificação. É o ser mais enigmático de todos os sete. Veste-se como um monge, com um capuz que sempre lhe tapa os olhos. Talvez seja cego, um destino cego, mas nunca chegamos a saber isso. Sabemos sim que tem sempre consigo um livro onde tudo está escrito, descrito e previsto. Apesar de poder ser cego, Destino lê incessantemente o seu volume que contém o destino de todo o universo. Destino habita um labirinto, num jardim de caminhos que se bifurcam (uma das milhentas referências literárias que Gaiman espalhou, como pérolas, ao longo de todos os volumes de The Sandman). Quando o universo nasceu, quer este, quer outros universos, pois estas personagens são ideias, independentes de contexto, Destino foi a primeira personificação a manifestar-se.

Death, a Morte, é caracterizada por Gaiman como uma atraente e benevolente rapariga de estilo gótico. Nada de esqueletos encapuçados empunhando ceifeiras; a morte para gaiman é uma rapariga por quem facilmente nos apaixonaríamos. É a Morte que nos entrega ao mundo, e é a Morte que, benevolentemente, nos ajuda às nossas transições quando deixamos este mundo. Transições, para onde? Isso não interessa. A Morte ajuda-nos, mas o nosso destino nunca deixa de ser nosso. A Morte está em todo o lado, acompanhando-nos com um sorriso benevolente. Quando o nosso universo esfriar e se esgotar, desaparecendo num enigmático futuro, será a morte que dará o último toque, que fechará a cortina, apagará a luz e fechará a porta a este universo.



Dream, o Senhor dos Sonhos, e heroi de The Sandman, é uma criatura enigmática que habita e manifesta os sonhos de todas as criaturas. O Senhor dos sonhos é extremamente conscienciso e responsável pelos seus deveres, de tal maneira que é o mais distante e desumano dos sete infinitos. As hitórias de The Sandman centram-se nele, e na sua evolução, em que os acontecimentos que vive o levam a dar mais valor e a respeitar profundamente aqueles que o rodeiam. E é essa bondade que o Senhor dos Sonhos adquire que acabará por provocar a sua morte. O Senhor dos Sonhos habita um palácio feérico, rodeado de estranhas criaturas, numa terra de sonho. No seu palácio podemos encontrar todas as formas de sonhos e pesadelos, mistérios e segredos, corvos e uma biblioteca que contém todos os livros que foram sonhados, mas que jamais foram escritos (uma ideia por demais deliciosamente poética)

Desire, o Desejo, é a/o quarta/o personificação. Um ser andrógino, de rara beleza, que habita as profundezas hedonistas do seu próprio ser, e que é a fonte de todos os nossos desejos irreprimíveis e inconfessáveis. É também a maior inimiga do Senhor dos Sonhos, apesar de ser seu/sua irmã(o).

Despair, o Desespero, é uma criatura feia e amarga que vive por entre o nevoeiro, no meio de espelhos que são janelas para as almas desesperadas destes mundos. O Desespero manifesta-se sempre que, olhando ao espelho, nos sentimos inseguros e somos apossados por aquele horrível sentimento que nos aperta as entranhas e destroi a nossa alma. O Desespero é também a irmã gémea do Desejo, e a ele é tão fiel que chega a negar a sua própria identidade.

Delirium/Delight é a mais bizarra das personificações ideiais. Inicialmente, quando o universo era jovem, representava a alegria de viver, a alegria simples da descoberta dos céus azuis, da beleza do mundo que nos rodeia. Delírio sofreu transformações, e hoje habita um espaço informe onde as mais bizarras ideias que atravessa a mente humana se manifestam. Delírio vive perdida nos labirintos da sua alma.

Destruction, a destruição, é um personagem enigmático. Quase não surge nas histórias de The Sandman, apesar de frequentemente mencionado. Destruição, um ser profundamente simples na sua complexidade, amante da vida, decidiu deixar o seu reino, abandonando a sua família. Ao longo dos milénios em que foi o senhor da destruição, o que não é necessáriamente mau - é preciso destruir para construir algo de novo, percebeu que no fundo, não era preciso preocupar-se. Nós fazemos um excelente trabalho a destruir aquilo que nos rodeia. Assim, Destruição, para grande pena e saudade dos seus irmãos, para quem tinha sempre uma palavra amiga, decide abandonar o seu papel e vaguear pelo mundo, maravilhando-se com a diversidade do grande festival que é a vida.

Mantive os nomes originais destes personagens. Talvez tenham reparado que em inglês, todos estes nomes começam por D.

Sete é um número fortíssimo, de grande simbologia. Lembrem-se: sete chaves, sete céus, sete dias, sete pecados, as sete maravilhas, as sete idades do homem, o sétimo filho do sétimo filho... na mitologia, o número sete é um dos grandes números simbólicos.

Tudo isto se torna mais complexo se percebermos que estas personificações são, à sua maneira, seres como nós, sujeitos às mesmas pressões a que nós estamos sujeitos. Apaixonam-se, eternecem-se, odeiam, entristecem, cobiçam... e todos os seus estados de alma influenciam as suas acções, acções essas cheias de repercussões sobre todos nós. Não são deuses todo poderosos, distantes e omnipotentes; obedecem a regras, e são volúveis. Tudo isto são características que Gaiman certamente se inspirou nos deuses gregos, com o seu panteão de poderosos seres volúveis e, em certos aspectos, mais humanos do que nós.

A humanidade inerente às personificações das grandes ideias transforma-as em, quando muito, meros pontos de vista sobre as ideias que representam.