Afinal, que feriado se comemora hoje? Que estranho acontecimento passado há muitos poeirentos séculos atrás nos concede um dia de descanso, um dia sem trabalho, um dia para celebrar e festejar um acontecimento que já se desvanece nas memórias?
Depende, como sempre, do ponto de vista. Os pontos de vista são muito divertidos, e entretêem-se a trocar as voltas às nossas pobres ideias.
Sobre um dia de hoje, há um ponto de vista que sacode a poeira dos séculos aos vetustos volumes da sua biblioteca. Podemos imaginar este ponto de vista como um simpático ancião, de ar grave, que endireita os seus óculos sobre o nariz enquanto sopra levemente o pó que se acumulou nas páginas do pesado tomo que segura nas mãos. Este ponto de vista conta-nos como no dia 5 de outubro de 1143, há oitocentos e sessenta e dois anos, ou, mais precisamente, trezentos e catorze mil seiscentos e trinta dias, danto ou tirando um ano bisexto aqui ou acolá, nas poeirentas ruas de Zamora, foi assinado um tratado que oficializou a independência de Portugal. Vale a pena ouvir este ponto de vista, pois o que ele nos conta está quase esquecido. Oitocentos anos são anos a mais para a memória humana; apenas aqueles de entre nós que amam os factos passados se recordam de feitos vividos em tempos tão recuados.
Podemos imaginar outro ponto de vista impecávelmente vestido com um fato de bom corte, rodado de acessores similarmente vestidos. Mal o conseguimos distinguir de entre os seus ajudantes. Este ponto de vista não vive, solitário, numa biblioteca atafulhada de livros. Este ponto de vista gosta de multidões, de procissões onde, como se santo fosse, vai no meio de todos, distribuindo palavras melífulas e carinhos inquietantes. Este ponto de vista, primeiro entre os seus pares, gosta de se considerar em tudo igual a todos os que o rodeiam. Ou, pelo menos, assim o diz. Este ponto de vista, de memória mais curta e mais fresca, anuncia que hoje se comemora a chegada da república. Anuncia-nos que há noventa e cinco anos atrás a velha monarquia que traçava as suas raízes aos tempos anteriores o cinco de outubro de 1143 foi deposta por uma revolução popular que, no seu lugar, instalou a república, que todos gostamos de imaginar como uma bela mulher de seios desnudos que agita a bandeira da liberdade.
Quanto a mim, tenho uma séria alergia a dias especiais. Um dia em trezentos e sessenta e cinco para celebrar ideias que devem estar sempre conosco, só, não chega. Prefiro todos aqueles curtos momentos sem data marcada em que pensamos naquilo que para nós é importante.
O meu ponto de vista, que podem imaginar como um tipo de trinta anos a escrever frente a um computador, tenciona celebrar com preocupação o radioso dia de sol que se faz sentir aqui na Ericeira. O céu está azul, e o mar, de tão calmo, mais parece um lago espelhado. Aguardo com ansiedade a visita de um velho e verdadeiro amigo, uma das raras pessoas que me tem acompanhado ao longo dos anos.
Isso, sim, é causa suficiente para celebrar.