terça-feira, 25 de outubro de 2005

The Great God Pan




The Great God Pan, de Arthur Machen

Arthur Machen | The Great God Pan
Arthur Machen | The Great God Pan
The Great God Pan
The Greek God Pan

Alguns autores de contos de terror optam pelo óbvio: o cadáver que se levanta da campa, pronto a aniquilar os seus entes queridos, ou fantasma a que uma tragédia antiga o obriga a lamentar-se pelos locais onde viveu, assombrando as vidas daqueles a que lhe são sensíveis. Mas os mais interessantes mostram-nos que paralelos ao nosso mundo, existem outros mundos, outras dimensões. Aos nossos olhos, as motivações dos seus hipotéticos habitantes parecer-nos-ão profundamente tenebrosas; aos nossos olhos habituados às formas do nosso mundo harmonioso, as formas destes seres sempre nos parecerão horripilantes e assustadoras. Os seus motivos são insondáveis, mas para nós, que nunca os compreenderemos, sempre serão inominávelmente tenebrosos.

Os melhores contos de terror são aqueles que menos nos revelam. As histórias de terror mais entediantes são aquelas em que o que terror se apresenta na sua magnificência assustadora. Não conseguimos temer o que conhecemos. Aquilo que somos capazes de ver não nos assusta. Ver o fantasma, ver o monstro, faz-nos perder o hipotético medo. O verdadeiro terror está na mera sugestão. Uma garra bem escondida vale mais do que dezenas de monstros resplandecentes de efeitos especiais.

Nunca saberemos o verdadeiro horror narrado em The Great God Pan. Apenas suspeitamos que está uma criatura hedionda à solta na terra, disfarçada sob o aspecto de uma bela e aparentemente virtuosa mulher. O horror, o horror óbvio, só nos é mostrado de relance no início e no final do conto. Tudo o resto é meramente sugerido; as atrocidades criminosas provocadas pela criatura são apenas indicadas, nunca descritas.

Pã é uma das divindades rurais gregas. Com torso de homem e pernas de bode, este chifrudo tocador de flauta simboliza o lado selvagem da alma humana. É uma divindade aparentemente benévola, mas... coloquemos as coisas desta maneira: todos achamos os leões belos e imponentes. São animais nobres, que simbolizam o que há de melhor nas antropormorfizações da alma humana. Agora, ponham-se lá num campo aberto ao pé deles. O respeito transforma-se em medo, a admiração em horror. O animal nobre pode perfeitamente comer-nos. Pã é a divindade que simboliza todas estas sensações. Nobre, selvagem, dedicado à música, com um apetite sexual lendário, é também uma divindade assustadora, pois sob a influência de Pã todas as barreiras são abolidas, e o lado selvagem da alma humana extravasa-se. Não por acaso, Pã está na origem das palavras pânico (o medo irracional) e pagão (adoradores do irracional).

Pergunto-me se há uma ligação directa entre as representações de Pã - uma criatura animalesca, com patas de cabra, torso e cabeça humana, com chifres e barbichas, e as representações de uma outra criatura, mais recente, pois pertence à mitologia cristã. Essa criatura está também ligada à sexualidade livre, embora da forma redutora e inibidora que os cristãos encontraram para se mortificarem. Estou, claro, a falar do Belzebu, chifrudo com cara e pernas de bode e corpo de homem, que contamina a mulher com o seu tenebroso poder sexual nos sabbats onde se reúnem as bruxas, uma das encarnações do Diabo da mitologia cristã.



Em The Great God Pan, a criatura é acordada pela veleidade de um cientista em aprofundar os conhecimentos da alma humana. O verdadeiro monstro talvez seja esse cientista, pois não hesita em considerar uma pobre joem orfã como sua propriedade, uma mulher que nas suas mãos pouco melhor se torna do que um animal de laboratório. No decorrer de uma das suas experiências, esta jovem descobre o verdadeiro horror para lá da mente humana (uau, esta frase é merecedora de um filme de série B) e fica, para o resto dos seus dias, catatónica. Nada mais se sabe dos destinos desta infeliz jovem e do seu desumano protector.

Anos depois, alguns frequentadores da alta sociedade londrina começam a aperceber-se de uma estranha mulher que conduz à loucura e ao suicídio todos os homens que dela se aproximam. É uma mulher fascinante, que todos querem conhecer, mas quando se tornam íntimos dela, algo acontece, algo os horroriza e leva ao suicídio. Nunca saberemos precisamente o que é que os horroriza (isso faz parte do encanto do conto). Apenas sabemos que por onde passa essa mulher, o mal acontece. Saber quem é a mulher é muito difícil - ela parece assumir muitas formas, muitos nomes, até que um acaso da sorte permite ligar o suicídio de um homem da alta sociedade a uma jovem e virtuosa viúva cujas festas e cujo círculo social são de frequência desejada.

Durante o conto, há um dado que só no final faz sentido. Anos atrás, numa aldeia do país de Gales (terra natal de Machen), uma criança que tinha sido dada à guarda de uma família de camponeses tinha estado envolvida num surto de loucura em que se afirmava que estranhas criaturas andavam à solta pelos campos.

No final do conto, todos os fragmentos se juntam. Ficamos a saber que a jovem vitimizada pela experiência dera à luz, meses mais tarde, uma bébé que fora entregue aos cuidados de uma família camponesa. Anos mais tarde, essa criança surge na alta sociedade como uma bela jovem, capaz de levar os homens que dela se aproximam à loucura. Sobre ela nunca recaem quaisquer suspeitas, pois após a morte dos maridos ou dos amantes ela desaparece, surgindo novamente sob outro nome e outro aspecto, para semear o pânico e a loucura. A horrível verdade é conhecida no final, quando aqueles que investigam este estranho caso a confrontam com a verdade, e a obrigam ao suícido. No momento da morte, perante os seus olhos, a bela mulher transforma-se no corpo grotesco de sátiro, no corpo de Pã.

Helen Vaughn, a identidade de Pã, assume-se neste conto como a verdadeira mulher fatal, aquela cuja aura de mistério e beleza leva os homens ao desejo e à loucura.

Nunca saberemos o horror que provoca a loucura e a morte. Apenas suspeitamos, pois Pã é uma divindade sexualizante que reencarna no corpo de uma bela mulher. Relembrando que o conto fo i escrito nos finais do século XIX, em plena época Vitoriana de moralidade asfixiante e comportamentos desviantes devidamente ocultados, não é difícil perceber que este conto está carregado de uma forte energia sexual, embora a tal facto nunca se faça referência. Mas há silêncios que gritam.