sábado, 10 de setembro de 2005
Tempo de Cinema
Peter Greenaway
Ao olhar para a minha corrente incapacidade em ir ver um simples filme como o Land of the Dead sem ter de vencer obstáculos maiores do que os dozer trabalhos de Héracles, não consigo deixar de me sentir nostálgico sobre aqueles tempos em que eu, habitante dos espaços arquitectónicos e das ruas de uma Lisboa que, não sendo uma grande metrópole, por vezes se assemelhava a uma aldeia, ia ao cinema todas as semanas. Por vezes, chegava a ir duas ou mais vezes por semana.
Agora, valham-me os dvds.
Podia ir muito ao cinema, mas não ia a muitos cinemas. Raramente frequentava os cinemas dos espaços comerciais, dos centros comerciais amoreiras e outros semelhantes, tirando uma ou duas escapadelas com os amigos por altura dos catorze anos. Foi nessa altura que vi o inenarrável ...and the Marlboro Man, filme inenarrável que na altura me pareceu o melhor filme do mundo. Felizmente ultrapassei esses géneros cinematográficos.
Há três cinemas em lisboa que me marcaram profundamente: o King, o Quarteto e o Nimas. Dos três, o King foi onde passei mais horas das minhas horas cinéfilas desses tempos. Ficando a meia avenida de minha casa, era o meu local de eleição para passar as tardes após o liceu, depois de uma passagem pela livraria Barata (já a quase uma avenida de distância). Claro que não era sempre... excepto se o filme fosse mesmo muito bom. Se assim fosse, não me negava a vê-lo duas ou mais vezes. As vantagens do cinema à tardinha era uma sala mais vazia (só quem gostava mesmo de cinema e tinha tempo é que ia a essa hora) e as ginginhas da Flor do Minho, a leitaria que ficava mesmo em frente do cinema King. O cinema, à noite, é uma actividade grupal. Há noite, o cinema é mais uma forma de convívio. O filme, por bom que seja, é diluído pela conversa com os amigos ou pelo namoro. Ir ao cinema em grupo, à noite, é quase perder tempo. Para se perceber e respeitar um filme, é preciso vê-lo sozinho. E era essa a grande vantagem das sessões da tarde. Quem lá ia, ia porque queria mesmo ver o filme, e não passar um bom bocado com os amigos. Não é que venha mal ao mundo por se ir ao cinema para conviver; muito pelo contrário. Mas aí é melhor não escolher um bom filme. Basta um filme que entretenha.
Foi no King que aprendi a ver cinema. Foi no King que vi filmes que mudaram a minha forma de pensar e que me despertaram para novas possibilidades narrativas e visuais. Não me confundam: a minha relação com o cinema nada tem a ver com lamechices ao estilo cinema paraíso, cheio de nostálgicas recordações de filmes que despertavam sentimentos sonhadores de um indescritível romantismo. Nada disso. Os filmes que me marcaram, fizeram-no por me mostrarem algo mais, para lá da cortina, para lá do véu, para lá dos espaços. Foi no King que vi obras como Reservoir Dogs, o primeiro banho de sangue cinematográfico de Tarantino, completo com criminosos de fato e música retro dos anos setenta. Outro filme que me marcou foi o violentíssimo The Bad Lieutenant, de Abel Ferrara, com um Harvey Keitel magistral no papel de um polícia que, influenciado pela vida do submundo, desce aos infernos enquanto tenta pagar uma dívida de jogo.
Prospero's Books foi o primeiro filme de Peter Greenaway que vi no cinema (os outros vi-os na televisão, naqueles tempos saudosos em que ainda valia a pena ver televisão). Fiquei tão fascinado, que repeti a dose cinco vezes. Era um filme sobre livros, shakespeare e a magia das palavras, ao som de Nyman com uma imagética fascinante que roubava ao barroco aquela noção de horror vacua no espaço do ecrã. Inesquecível. De Greenaway também me recordo seu último filme, The Baby of Mâcon, um exagerar ao absurdo da sua imagética barroca. Um outro filme que vi umas cinco vezes nas salas escuras do King foi o inimitável Delicatessen, uma hilariante comédia negra de Jeunet e Caro (a mesma dupla por detrás do mais soft O Fabuloso Destino de Amélie.
Vi muito cinema de autor naquelas salas. O polaco Krysztof Kieslowski, com a sua belíssima trilogia Bleu - Blanc - Rouge sobre amor e perda; o primeiríssimo filme de David Lynch, o bizarro Eraserhead ("está uma coisa no hospital, nasceu hoje" "é menino ou menina?" "os médicos não têm a certeza se é um bébé"), o final heróico da trilogia Evil Dead, antes de Sam Raimi se passar para hollywood e se dedicar a filmes entomológicos sobre aranhiços de duas patas que se passeiam pelos telhados de Nova Yorque. La Haine, filme francês sobre a vida em bairros degradados. Crash. Raining Stones, de Ken Loach, o filme que me ensinou mais sobre pobreza e solidariedade do que milhentos manuais marxistas sobre distribuição do capital. Os Sete Samurais de Kurosawa, simplesmente genial. Blow Up de Antonioni. Naked, de Mike Leigh: "are you following me? do you understand? are you following me? do you understand? are you following me? do you understand?". O Puto e The Van de Stephen Sommers, retratista de uma irlanda diferente de tudo o que imaginamos. O Fio do Horizonte. E tantos, tantos outros...
Depois de uma educação cinematográfica destas, como é querem que eu considere boas palhaçadas como a maioria daquelas que estreiam semanalmente nas salas de cinema dos centros comerciais deste país?
Nesses meus anos de lisboa, o Nimas reabriu, com um ecrã, se não gigante, pelo menos maior que os do king. Foi o cinema dos espectáculos visuais, onde vi filmes como o apaixinante Orlando de Sally Potter, que me obrigou a conhecer a obra homónima de Virginia Woolf (quem tem medo de...?) sobre o arquétipo de mulher que está naquela fronteira indefinida (orlando é um homem que se androginiza ao longo dos séculos, até à maternidade, onde se revela ter-se tornado mulher). Outro filme que me salta à memória foi o meu primeiro filme chinês, na altura em que o cinema chinês era perfeitamente desconhecido na aqui na europa. Adeus, Minha Concubina de Chen Kaige, um delírio visual e sonoro passado numa Shangai de sonho dos anos vinte.
Do Quarteto guardo memórias de filmes mais comerciais vistos em boa companhia. Também guardo memórias das cervejas Corona que lá bebi, antes do filme, durante o filme (o cinema tinha intervalos) e após o filme, se o bar ainda não estivesse fechado. O Quarteto é um cinema mítico, famoso pelas suas maratonas de vinte e quatro horas de cinema, a que eu, infelizmente, nunca compareci. O Quarteto era a sala alternativa que oscilava entre cinema de autor e cinema comercial.
Hoje, a ida ao cinema é rara, e por isso escapista. O que safa a minha cinefilia são os dvds, que me permitem ver e rever cinema que faz pensar. Esses tempos de lisboa foram tempos de juventude, em que as responsabilidades eram poucas. Bastava estudar. Hoje, o trabalho, as contas, e, essencialmente o trabalho, sugam o meu espírito, deixando-me vazio e sem forças para preencher esses vazios. Porque, como qualquer amante de cinema, música ou literatura sabe, tempo é o que é preciso para saborear e digerir os produtos culturais (ai, que lógica tão mercantilista). E o tempo, nesta altura da minha vida, escorre, como areia, por entre os meus dedos.