sexta-feira, 2 de setembro de 2005

Oceanos

"Sempre que eu me encontro com pensamentos cada vez mais negros; sempre que a minha alma é de um cinzento novembro; sempre que me encontro a parar involuntáriamente perante cangalheiros, e a seguir atrás de cada funeral que encontro; e especialmente quando as emoções são de tal maneira que necessito de grandes e fortes princípios morais para me impedir de deliberadamente saltar para o meio das ruas e metódicamente começar a deitar abaixo os chapéus das pessoas - nessa altura, penso que está na hora de ir para o mar assim que possa. É este o meu substituto para uma pistola e uma bala."

Assim fala Melville nos primeiros parágrafos de Moby Dick. E mais diz. Das suas palavras de homem de letras que antes de ser de letras era de mar, retira-se a ideia de que o mar, mais do que setenta e cinco por cento da superfície deste planeta, é o lugar em que o homem pode, enfim, ser ele mesmo. As grandes ondas do oceano são o espelho da nossa alma, e olhando-nos nelas, desesperamos - ou esperamos.
É bem verdade que o mar sempre encerrou a promessa de fantásticas aventuras. Quem já não sonhou saltar para dentro de um barco em qualquer porto esquecido e por esse mundo navegar, vagabundeando por entre exóticas nações distantes, embebedando-se com centenas de diferentes bebidas; tendo por companheiros os mais longínquos e curiosos homens do planeta?

Mas nem sequer é preciso sonhar-se em ser um Robinson Crusoe, ou um Conrad, ou um Melville saltando de baleeiro em baleeiro à volta do mundo em arriscada preparação para tantos e tão belos livros... basta dar um pulo a qualquer praia mais favorecida num qualquer dia de verão ou de inverno. Nem todos somos artistas para amar o mar, mas todos o amamos. Desde as crianças que brincam na areia aos pares de namorados num recanto mais escondido entre as rochas, aos avós babados e aos velhos pescadores pachorrentos a fumar um cigarro encostados a um qualquer muro de uma qualquer capela dos navegantes com vista para as ondas, todos fascinados pela sublime força e completa indiferença do mar.

Que pensamentos nos vêem à cabeça quando estamos numa manhã invernosa no alto de um penhasco sobre o mar? Talvez saltar para o abraço gélido do oceano indiferente. Talvez ficar, de cabelos revoltos, a ver a violência das nuvens no céu por sobre um mar alteroso como o das lendas. Mas é certo que só pensamentos felizes nos ocorrem quando num solarengo dia de verão vemos as ondas calmas a rebentarem na praia.
Grandes oceanos sempre exigiram grandes literaturas. O homem e o mar foram o tema preferido dos mais fantásticos relatos, reais ou fictícios, desde a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto ao O Velho e o mar de Hemingway. Lendo os livros escritos sobre o mar (de preferência na praia) é impossível não sentir uma certa pontinha de inveja pelos homens que de tal maneira conseguiram escrever os oceanos. As aventuras, as privações, os sofrimentos, as alegrias, a intensidade do mar. O homem no lado mais animalesco do seu racionalismo. A inclemência da distância... e a solene indiferença do mar, que se comporta exactamente como se comportava há milhões de anos atrás e se comportará daqui a muitos milhões de anos.

Mais Melville. "Mas a terrível solidão é intolerável. A intensa concentração do eu no meio de tão indiferente curiosidade, meu deus! Quem o pode dizer? O mar havia mantido o seu corpo à tona, mas havia afogado o infinito da sua alma."