quarta-feira, 28 de setembro de 2005

O Despertar de Cthulhu



O Despertar de Cthulhu

Este conto, The Call of Cthulhu no original, é uma das pérolas literárias de Lovecraft. Nele, somos introduzidos aos mitos de Cthulhu, o mestre dos grandes ancieães, que dorme na cidade submersa de R'lyeh, esperando que os seus acólitos o despertem do encantamento que o mantém prisioneiro quando as estrelhas se alinharem.

The Call of Cthulhu aborda todos os aspectos essenciais dos mitos de Cthulhu. No conto, Lovecraft desenha com uma clareza fascinante todos os componentes do mito: os Grandes Anciães, criaturas de além espaço que colonizaram a terra quando o sol ainda era jovem; Cthulhu, um ser cefalópode de corpo humanoide, o mais poderoso dos grandes anciães, quu lançou sobre a sua raça um encantamento que os mantém adormecidos através da eternidade, mas que estando também sujeito ao encantamento é impotente para libertar os grandes anciães; a cidade submersa de R´lyeh, onde dormem os grandes anciães, local hediondo onde a própria geometria do espaço se altera (nas palavras de Lovecraft, os ângulos agudos comportam-se como sendo obtusos) e as sombras misteriosas ocultam segredos tenebrosos por entre as ruínas cobertas de limos esverdeados; os cultos de acólitos de seres humanos degenerados, que Cthulhu influencia através dos sonhos para que o libertem através de encantamentos proferidos em horríveis cerimónias onde seres humanos são sacrificados às entidades misteriosas conhecidas como seres alados; os vestígios do tempo em que os grandes anciães dominavam sobre a terra, consubstanciados em bizarras estátuas de proveniência incerta e antiguidade impossível e nos escritos do àrabe louco Abdul Alhazred, embora neste conto Lovecraft ainda não fale do Necronomicon.

O que distingue The Call of Cthulhu de outros contos semelhantes no género, como os do contemporâneo de Lovecraft, Clark Ashton Smith (hoje quase esquecido) e do seu predecessor britânico, Arthur Machen, é a forma como a história é contada. Todos os acontecimentos que narram os horripilantes factos sobre o culto de Cthulhu, bem como os indícios que levam à enlouquecedora conclusão sobre aqueles que dormem no fundo do oceano, esperando despertar, não acontecem ao narrador. Em The Call of Cthulhu, Lovecraft utiliza o recurso estilístico de narrativa dentro da narrativa, narrando a história através de relatos atribuídos a outros autores e a recortes de jornal (um recurso tornado famoso pelos contos do argentino Jorge Luis Borges).

A narrativa começa com um parágrafo escrito na forma complexa de Lovecraft que nos indicia a complexidade e a incompreensão que nos esperam no final da história. Após esta introdução, onde somos apresentados ao narrador, que está a investigar estranhos documentos encontrados nos papeis de um familiar falecido em circunstâncias misteriosas. A principio, o tom é de branda curiosidade, com um narrador distante a escrever sobre os misteriosos indícios do culto de cthulhu. O medo e o horror começam a infiltrar-se na história com o relato da história do familiar do narrador, que regista um estranho artefacto criado por um artista neurótico que contactara o professor Angell, o familiar falecido do narrador, que representava um estranho ser com uma cabeça cefalópode, repleta de tentáculos, com asas e um corpo humanoide. O artista havia criado a estranha escultura na sequência de uma série de sonhos bizarros que quase o haviam levado ao delírio durante uma série de datas específicas. Aqui Lovecraft introduz-nos à estranheza e ao carácter mítico de Cthulhu, um estranho mito saído de sonhos tenebrosos.

Com a segunda parte do texto, o depoimento do inspector Legrasse, da polícia de Nova Orleães, o mistério adensa-se. Legrasse contactara o professor Angell num congresso dedicado à arquelogia, mostrando-lhe uma antiquíssima estatueta confiscada a um culto tenebroso que a polícia de Nova Orleães havia desmantelado, pois os seus rituais hediondos ameaçavam as populações dos pântanos profundos da Louisiana. A estatueta era em tudo semelhante à obra do artista, excepto num pormenor: a sua extrema antiguidade, que deixara estupefactos os arqueólogos e os especialistas em artefactos antigos. As traduções dos escritos sobre a estatueta fornecidas por Legrasse a Angell, graças aos interrogatórios aos membros degenerados do culto, ecoavam misteriosamente com as palavras que o artista que contactara Angell ouvia nos seus sonhos delirantes.

É aqui que se fala em Cthulhu pela primeira vez. É Legrasse que identifica o culto, afirmando que os acólitos detidos se dedicavam a adorar um deus Cthulhu, em elaboradas cerimónias destinadas a libertá-lo sobre o mundo.

A curiosidade toma conta do espírito do narrador, que decide aprofundar as suas observações antropológicas sobre o culto de Cthulhu. Descobre assim um conjunto de dados inquietantes, que isolados não têm qualquer significado, mas reunidos formam um conjunto tenebroso. Existe um inquietante conjunto de coincidências: ao mesmo tempo que Legrasse detia os acólitos de Cthulhu em Nova Orleães, após relatos de arrepiantes cerimónias ocultas, o artista que contactara Angell sofria de estranhos pesadelos, outros artistas, poetas e outras almas sensíveis em todo o mundo sofriam de delírios semelhantes, e uma epidemia de loucura violenta parecia alastrar por todos os sanatórios e asilos de loucos. E, tão subitamente como começara, tudo terminara.

A terceira parte do texto, o relato de um estranho naufrágio no pacífico sul do qual um marinheiro norueguês foi o único sobrevivente, revela então todo o horror contido no mito de Cthulhu. O relato do marinheiro, falecido em circunstâncias também misteriosas, fala-nos dos acontecimentos que se desenrolaram após um terramoto. O navio onde o marinheiro navegava é estranhamente atacado por uma escuna tripulada por canacas e seres degenerados. Os marinheiros resistem, e acabam por eliminar os atacantes, perdendo no entanto o seu navio, afundado pela artilharia da escuna pirata. Curiosos sobre o motivo do ataque, os marinheiros invertem o rumo da escuna capturada, para descobrirem o segredo que os canacas tentavam proteger. Chegam, assim, a uma ilha desconhecida, que havia subido à superfície graças ao recente terramoto. Nessa ilha, os assustados marinheiros descobrem as ruínas de uma cidade afundada, cuja geometria simplesmente não fazia sentido, e por entre as trevas dos edifícios cobertos de algas são quase todos devorados por uma criatura esponjosa que tinha uma cabeça cefalópode, repleta de tentáculos, com asas e um corpo humanoide. Corajosamente, os dois últimos sobreviventes fogem para o barco, sendo sempre perseguidos por esta estranha criatura. O marinheiro noruguês, desesperado, vira o barco e abalroa a estranha criatura, que regressa à ilha para se recompor. Perdidos no mar, os dois marinheiros sofrem uma violenta tempestade, em que quase perecem. Semanas depois, são resgatados por um navio de guerra australiano, que navegara pela zona onde o marinheiro dizia existir uma ilha, mas onde agora só existem ondas. Apenas o marinheiro norueguês sobrevive. O seu companheiro morrera de loucura.

No final, tudo se associa, como peças de um intricado puzzle de loucura. Todas as datas coincidem: as cerimónias hediondas do culto de Cthulhu, a onda loucura que varre os asilos, os sonhos delirantes das almas sensíveis dos artistas, tudo isto acontece no mesmo espaço de tempo narrado pelo marinheiro noruguês, o tempo em que o terramoto põe a descoberto as ruínas de R´lyeh, Cthulhu acorda do seu sono de eternidade, e a tempestade volta a afundar R'lyeh nas profundezas do mar, arrastando Cthulhu consigo.

Chegamos ao fim da história com um narrador assustado, que finaliza o seu relato temendo pela sua vida. Os acólitos de Cthulhu ainda estão em liberdade, e são os responsáveis pelas mortes misteriosas daqueles que investigaram esta estranha história. O narrador teme ser assassinado por eles. Mas, mais do que isso, o narrador teme os estranhos seres que se escondem no seu sono eterno por debaixo das ondas, nas trevas do fundo do mar. Teme o seu poder, teme o seu ressurgimento. Pois "aquilo que se ergue poderá afundar-se, e aquilo que se afundou poderá erguer-se" novamente.

Nota:

A leitura e as citações de The Call of Cthulhu foram retiradas da belíssima tradução de João Catarino presente no livro Os Melhores Contos de Howard Phillips Lovecraft, editado pela Saída de Emergência.