terça-feira, 9 de agosto de 2005

Ulugh Bei

"Príncipe das Estrelas", Bernhard du Mont e Heiner Schwan, Scientific American Brasil, Janeiro de 2005, páginas 50-59

Scientific American Brasil
Restos do observatório de Ulugh Bei
Samarkand |Ulugh Bei

(Irritantemente, a scientific american original não apresenta referências a este artigo e a edição brasileira não permite a leitura online)

Quando me falam em fundamentalismos religiosos transformo-me. Perante as filosofias dos fundamentalistas cristãos, islâmicos ou quaisquer outros, perante até qualquer filosofia de tipo religioso, perco a minha discreta compreensão liberal pelas ideias que me rodeiam. Normalmente, penso que a diferença de opiniões deve ser estimulada, discutida e aceite. Excepto no que toca à religião.

Porquê, perguntam? Se os aviões atirados contra arranha-céus, se as bombas em comboios e autocarros, se as proibições de uso de preservativos ou as posições sociais da igreja católica não vos convencem, deixem-me contar a história de Ulugh Bei, tal como a descobri na Scientific American Brasil de janeiro deste ano.

A àsia central é terra de desertos e montanhas. Por entre as ruínas das cidades míticas de Samarcanda, Bukhara, Nishapur, Isfahan e tantas outras, cujos nomes despertam sonhos de aventuras exóticas em terras arábicas de utopia e maravilhas inimagináveis, espera-se encontrar de tudo, menos alta tecnologia (do século XV). No entanto, Samarcanda, sob o reinado de Ulugh Bei, dispôs de um moderno observatório astronómico com cientistas capazes de realizar observações que só foram melhoradas séculos depois, na europa de Galileu, Huygens, Kepler e Copérnico. Descendente de Gengis Khan, neto de Tamerlão, Ulugh Bei governou Samarcanda entre 1409 e 1447. Nesses tempos, Samarcanda era uma cidade enriquecida pelo tráfego de bens da rota da seda. Essa riqueza, conjugada com uma classe dirigente aberta às artes e às ciências, permitiu a Ulugh Bei a construção de madrassas que ultrapassavam a noção de escolas teológicas, similares às universidades ocidentais, a atracção de grandes mentes científicas e culturais do mundo àrabe da época e, a grande paixão de Ulugh Bei, a construcção de um moderno observatório astronómico.

Foi aqui que as maiores contribuições de Ulgh Bei para o desenvolvimento da ciência de desenrolaram. Durante trinta anos, juntamente com colaboradores, Ulugh Bei mediu e observou cerca de setecentas estrelas. Coligidas na monumental obra Zij (tabelas), as medições nela contidas só foram ultrapassadas em precisão pelas observações de Tycho Brahe.

Com tudo isto, fica no ar a pergunta: porque é que Ulugh Bei é quase esquecido? Porque é que entre todas as ideias que associamos a Samarcanda, a de centro científico não aparece? A resposta está numa perigosa conjunção entre política e a ordem religiosa dos desvixes sufistas, os Nakshbandi. A busca pelo conhecimento científico e a liberalidade dos costumes da corte de Ulugh Bei (onde até as mulheres podiam estudar) irritavam sériamente estes dervixes. Apostados num islão fundamentalista, considerando que todo o conhecimento necessário ao homem estava contido no Corão e nas Hadith, olhavam com maus olhos para os cientistas da época, que se atreviam a apoderar-se dos segredos de Allah. Para estes dervixes, o liberalismo, o luxo e a procura de conhecimentos desta corte eram um crime aos olhos de deus. A atribuição a Ulugh Bei da fras "a religião dissipa-se como a neblina, os reinos perecem, apenas as obras dos sábios permanecem eternamente" ajudaram as acusações de impiedade contra Ulugh Bei.

Com a morte do pai de Ulugh Bei, em 1447, rei dos reinos mongois da àsia central, começaram os jogos políticos mortais entre os irmãos herdeiros do trono. O irmão de Ulugh Bei, Abdul Latif, aliou-se aos Nashkandi para derrotar militarmente Ulugh Bei e tornar-se rei. A partir daqui, os acontecimentos tomaram uma forma previsível. Abdul Latif, numa caricatura de piedade, envia Ulugh Bei em peregrinação a Meca enquanto secretamente o julgava e condenava à morte segundo a Sharia. Decapitada, a cabeça de Ulugh Bei esteve exposta na madrassa que o próprio Bei mandara construir.

O obscurantismo religioso apoderou-se de Samarcanda. Os sábios e eruditos, temendo pelas suas vidas, fugiram, e o observatório astronómico foi abandonado. Serviu como pedreira, até que os dervixes decidiram apagar toda a memória do centro científico de Samarcanda e erigiram no local do observatório um mausoleu religioso às "quarenta virgens" (não me perguntem, tenho de investigar esta) que se tornou num lucrativo local de peregrinações.

A diáspora dos eruditos de Samarcanda levou o Zij de Ulugh Bei a todo o mundo islâmico. Todos os astrónomos islâmicos trabalharam com as observações de Ulgh Bei e, ao chegar ao ocidente, o Zij, embora já tardio, influenciou o trabalho de Edmund Halley (esse mesmo, o do cometa).

Esta pequena parábola, infelizmente verdadeira, serve perfeitamente para ilustrar a minha posição perante fundamentalismos, quer religiosos quer de outros tipos (que também os há). Os fundamentalistas não são indivíduos pacatos que apenas querem viver de acordo com as suas crenças. Se lhes dermos oportunidades, eles não hesitarão em destruir toda a nossa sociedade e todo o nosso modo de vida, em nome à obediência ao corão ou à bíblia. A história está por demais cheia de exemplos como os de Ulugh Bei (caso das cruzadas, das guerras religiosas que devastaram a europa, e até mesmo o nazismo), que demonstram com os fanáticos, obtendo poder, provocam retrocessos que por vezes são irrecuperáveis. Nós, sociedade moderna e tolerante, não podemos infelizmente ser tolerantes para com estes fanáticos. Não podemos plácidamente discutir em pé de igualdade com pessoas que nos consideram como inferiores, individuos degenerados que pouco mais merecem que os fogos do inferno ou a aniquilação no caminho para o trabalho.

Pessoalmente, sou ateu, mas isso agora não vem ao caso. Longe vão os tempos em que eu achava que tudo o que era religião deveria ser apagado da face da terra. A religião é um direito. Se as pessoas preferem escolher o caminho da ignorância e acreditarem numa qualquer crendice religiosa, estão no seu direito, e quem sou eu para lhes negar isso. Mas no que toca aos fundamentalistas, de qualquer religião, o perigo por eles representado é demasiado grande para que simplesmente os deixemos ser como eles são. Não se trata apenas da nossa defesa. É a nossa civilização culta e liberal que está em perigo.