sábado, 6 de agosto de 2005
Ben Katchor
Ben Katchor
Ben Katchor: Picture Stories
Comic Creator: Ben Katchor
Histoires Urbaines de Julius Knipl, Photographe
Casterman, 2005
A banda desenhada não costuma ser vista como um campo criativo de onde surgam obras primas. Anos de condicionamento comportamental através das leituras do Asterix, tiras do Garfield, comics de super-heróis e historietas do rato mickey com e sem o pato donald geraram no público a noção que a B. D. é, quando muito, coisa de putos. Às vezes aparecem por aí algumas B.D.s que parecem um pouco mais sérias. Obras como O Incal, de Moebius e Jodorowski e A Caçada, de Pierre Christin e Enki Bilal desafiaram os públicos tradicionais quer pelo surrealismo da bd (caso do Incal) quer pela acutilância política - A Caçada é um documento sublime sobre os regimes sovietizantes do leste europeu, ilustrada por Bilal, um jugoeslavo que viveu na pele as contradições e as violências dos regimes de repúblicas populares socialistas (e que, anos depois, após a derrocada da Jugoslávia e do terror de Sarajevo, começou a trabalhar no estranho O Sono do Monstro). O campo dos comics também se revelou fértil em abordagens mais sérias a um género de banda desenhada que consiste básicamente em homens e mulheres semi-nus desenhados com fatos colantes (um eufemismo, enfim, todos sabemos que o fato do super-homem revela toda a musculatura e outros detalhes, mas para bem das decências vamos chamar-lhes fatos) com surrealistas super-poderes que lutam contra homens e mulheres semi-nus com super poderes maldosos. Nítidamente não é um género muito sofisticado, mas o ar de magia e de sensações de estranheza associados aos comics permitiu algumas abordagens de grande qualidade - basta lerem o genial Sandman escrito por Neil Gaiman, a reinvenção do Monstro do Pântano por Alan Moore ou a reviravolta que Frank Miller (esse mesmo, do Sin City) e David Mazzuchelli deram a um personagem de fim de lista, cujo comic estava quase a ser descontinuado - o Demolidor, homem sem medo. Hellboy de Mike Mignola ou qualquer história ilustrada por Bill Sienkiewicz também são exemplos de bds em que a qualidade literária e a qualidade da ilustração superaram os estreitos limites do comic de super-heróis. E, finalmente, temos sempre a banda desenhada independente, onde pontuou o lendário Robert Crumb e onde podemos encontrar experiências tão diversas como a Hate de Peter Bagge, os contos de Adrian Tomine, 8 Ball e Ghost World de Daniel Clowes ou os trabalhos de Peter Kuper.
Com tudo isto, já me esquecia de Art Spiegelman com a sua obra Maus. Ou Hugo Pratt, autor do lendário Corto Maltese. Mas sobre Spiegelman (e Pratt) falarei noutras alturas.
Tirando estas experiências, a Banda Desenhada não evoluiu assim tanto desde os tempos do Yellow Kid, Crazy Cat e Little Nemo in Slumberland. Cento e tal anos após ter começado a desenvolver-se, a B.D. ainda continua como um media de massas, fortemente estruturado e restringido, pensado para consumo rápido. Das toneladas de papel impresso aos quadradinhos que são publicadas anualmente, pouco vale a pena ler. Mas, como àparte, penso que a literatura sofre do mesmo problema. Por cada Michel Houellebecq ou Paul Auster que é publicado, são publicadas toneladas de Margaridas Rebelos Pintos e Helen Fieldings. O negócio editorial não é um serviço público, é um negócio que mal cheira lucro e dinheiro, publica o produto empacotado em capa cor de rosa, pronto a ser vendido em supermercados e bancas de aeroportos. Também a Ficção Científica é desvalorizada devido à cupidez do mercado. Os trabalhos de J. G. Ballard, Arthur C. Clarke, Larry Niven, H. G. Wells e tantos outros empalidecem perante os efeitos especiais e as explosões da Guerra das Estrelas.
Mas já estou a divergir. O objectivo deste post eram as aventuras de Julius Knipl, Real Estate Photographer. Avancemos.
Há obras de banda desenhada que ultrapassam largamente os constrangimentos da vinheta. Esta é uma delas. Misturando a poesia do quotidiano com uma surrealidade feérica que é estranhamente paralela à nossa, as histórias de Julius Knipl estão cheias de faits-divers e pequenas obsessões, passadas numa estranha cidade que em tudo é nova york, menos no nome (o qual nunca chegamos a saber). Sob o olhar de Knipl, cruzam-se estranhas pessoas, crises institucionais, obsessões incomuns. Profundamente urbana, esta obra reflecte os pequenos momentos do dia a dia urbano - as conversas de café, o tecido de pequenas lojas comerciais, a vida por entre prédios de apartamentos e prédios de escritórios. É a vida da cidade na sua mais pura e divertida essência. Porque as cidades não são feitas de pressas e engarrafamentos. Quem as conhece bem, sabe que são lugares maravilhosos, onde cada esquina é uma nova descoberta e cada rua encerra em si a promessa de novas maravilhas. Temos apenas de parar, e olhar.
Das páginas de Julius Knipl, Real Estate Photographer, envolve-se uma poesia humana com um suave toque surrealista. Esta obra de Katchor está perfeitamente situada no cruzamento entre b.d. e literatura, sem que seja uma coisa ou outra. Antes, é algo de novo, refrescante e maravilhoso.
O que falta saber sobre Katchor? Quase tudo. Do pouco que sei, sei que é um puro judeu de nova york (tal como Woody Allen) e publica tiras de b.d. em jornais norte americanos. Para além de Julius Knipl, Real Estate Photographer, Katchor também cria The Jew of New York, Hotel & Farm e Cardboard Valise. No seu site pessoal, encontram-se disponíveis as tiras semanais de b.d. criadas por Katchor.
Vale bem a pena ler, e, se possível, valeria mesmo mesmo a atenção de uma editora portuguesa.