sexta-feira, 1 de julho de 2005

Terras malditas

Guardian Unlimited | David McKie || Village of the Damned

Acabei de ler um assustador artigo de opinião de David McKie no Guardian. McKie falou de uma vila campestre, Bowerchalke, nos arredores de londres, cuja história do dia a dia se encontrava registadas num antigo jornal local. Há medida que ia falando dos tempos passados, comparava com os tempos presentes. Assim fiquei a saber que naquela vila, a vida nunca foi fácil. Mas as pessoas uniam-se para superar as dificuldades do dia a dia. Nos tempos em que não havia assistência social nem medicina pública, havia clubes de cidadãos que tentavam responder às necessidades da comunidade. Apesar de pobre, a aldeia suportava alguns negócios, o pub local e pequenas lojas. Hoje, já não há negócios na aldeia (excepto um, mas já lá vamos). A escola da aldeia fechou, sendo os alunos levados de autocarro para a vila mais próxima. Lendo o artigo, percebi que o único melhoramento na aldeia se deu nas casas - as pequenas casas sem condições dos camponeses (as "idílicas" casas rurais inglesas) aumentaram de tamanho e de condições, respeitando no entanto aquela linha arquitectónica ruralista de que os ingleses tanto gostam.

O que é que aconteceu à aldeia, apelidada por McKie de Village of the Damned (título de um seminal livro de Ficção Científica e traduzível como terra dos malditos)?

A pista está no negócio que sustenta os poucos habitantes da aldeia - tomar conta de casas. O negócio da terra, hoje, resume-se a limpar, manter aquecidas e tratar dos jardins das casas de campo renovadas da vila, para que os habitantes de fim-de-semana possam ir até à sua casa de campo sem se preocuparem com as tarefas domésticas. A aldeia perdeu a escola, o pub e o comércio. Apenas resta a igreja e casinhas campestres renovadas tão caras que é impossível aos filhos da terra viverem na terra em que nasceram.

O artigo aborda um problema comum a todos os países europeus - com a urbanização crescente, os espaços tradicionais esvaziam-se, sendo apenas mantidos como atracção estética. e o artigo assustou-me porque... olhei para a Ericeira, e comecei a rever a aldeia do artigo.

Desde que conheço a Ericeira que ela está a crescer, desmesuradamente. Os terrenos à volta da vila, que eu conheci como pinhais quase selvagens, estão agora cobertos de condomínios que nascem como uma praga de cogumelos depois das chuvas. A atracção do turismo e do mar vai mantendo viva a vila, agora já descaracterizada - de vila piscatória, a Ericeira metamorfoseou-se em vila de turistas no verão e dormitório no inverno. As casas que rodeiam a vila são desabitadas na maior parte do ano, tirando umas semaninhas no verão e um fim-de-semana ou outro no resto do ano. As que são habitadas, são-no por pessoas que trabalham longe, geralmente em lisboa, e que aproveitam as auto-estradas e alguma afluência financeira para adquirirem casas caríssimas e assim fugirem aos desoladores subúrbios de lisboa. Ainda existem ericeirenses, misturados com os novos habitantes fugidos da grande cidade e populações flutuantes de turistas e emigrantes brasileiros.

É triste o destino destas terras. Quem vem de fora, vem atraído por uma imagem idílica da localidade, mas ao vir, contribui activamente para a destruição da imagem e da identidade cultural da comunidade. A Ericeira ainda não chegou ao extremo de Bowerchalke, nem chegará - o apelo do turismo é suficiente para manter uma economia local. Mas no fundo não é assim tão diferente. Com os preços das casas a disparar, quem serão os filhos da Ericeira que têm possibilidades financeiras para morar na sua terra? Com os empregos da economia de serviços que sustenta a vila a serem ocupados por mão de obra barata vinda do brasil e do leste, que empregos lhes restam? A identidade cultural da vila é apenas preservada para entreter os olhares dos turistas, e o mosaico de habitantes irremediávelmente alterado. E pessoas como eu, que escolheram conscientemente a vila para viverem e trabalharem, contribuindo directamente para a comunidade, assistem e registam as pequenas convulsões socias, levadas pela maré das tendencias sociais e económicas, que transformam irremediávelmente a vila.