sábado, 16 de julho de 2005

Os desertos



Caríssimo blog:

Ontem redimi centenas de pecados, em penitência única de sofrimento atroz. Mergulhei na massa fétida da humanidade e chafurdei nos esgotos culturais. Em suma, assisti a um concerto de uma boy's-band. Ao escrever esta frase, caríssimo blog, fui invadido por uma onda avassaladora de vergonha e curvei a cabeça, entristecido. Eu, num concerto. Num concerto de uma boy's band. Se alguem lá me viu, eu nego. Não, nada disso, viu certamente alguém muito parecido comigo. A essa hora estava a ouvir música, A l'ille de Gorée de Xenakis. Olhe que de noite todos os gatos são pardos. Garanto-lhe que não estava mesmo a ver esse concerto.

Mas estava.

Nos anos 70, o grupo de arquitectura teórica Archigram propôs, entre os seus projectos de urbanismo futurista de estética pop, a construção de gigantescos Instant City Blimps - Dirigíveis Cidade Instantânea, balões artilhados com ecrãs e sistemas de som que vagueariam pelos campos, vilas e aldeias levando ao interior isolado a cultura urbana. É um reflexo humorístico daquela ideia elitista de que só nos grandes centros existe cultura que se veja. A versão portuguesa desta ideia é a frase portugal é lisboa e o resto é paisagem, ideia que eu, caríssimo blog, tristemente admito que subscrevia inteiramente, até ter deixado de viver em lisboa e me ver obrigado a um exílio permanente na paisagem. Liberto do elitismo, fui obrigado a descobrir a vibrante cultura dos centros interiores, teóricamente empobrecidos pela sua distância do grande núcleo cultural. Certo, caríssimo blog, argumentas que não será, talvez, uma cultura tão sofisticada, que não podemos pôr no mesmo saco as tasquinhas de rio maior com a temporada de música da gulbenkien, que a temporada de ópera no s. carlos não é bem a mesma coisa que as festas da vila da ericeira. Mas o não ser sofisticada não implica que não exista, que é a visão elitista que se tem quando se olha para fora do grande centro. E é com essa ideia que os teóricos do Archigram brincavam.

Mas estou a divagar.

Ontem na noite de mafra, senti a vertigem que sentiria se fosse pobre e triste camponês a pastar as cabrinhas no monte e me passasse por cima um IC Blimp a bombardear-me com sons e imagens da cultura citadina. Talvez, quem sabe, ficasse extasiado imerso nas sonoridades, embevecido com as imagens, esquecido dos montes e vales que me rodeavam. E as cabrinhas também sentiriam, certamente, a imediata elevação do seu nível cultural. Mas a banda que tocou fez melhor do isso. Atingiu-nos com força avassaladora de um esquadrão de B2 a lançar um ataque táctico termonuclear. A força da música era tanta que à sua passagam nada mais deixava do que um deserto àrido e desolado, queimado e desprovido de qualquer forma de vida pensante.

Mas, se não perceberam, estou a falar do concerto dos DZRT ontem em mafra, como parte das noites da cigarra.

Dzrt faz mesmo pensa em deserto, que é uma palavrinha que define muito bem o nível cultural e musical da banda. Um deserto àrido. Só imagem, farsola e imediata para maximizar o lucro consumista. Uma típica boys band, produto comercial que apresenta rapazes dançarinos a pular ao som de ritmos básicos para delírio de pré-adolescentes (e desespero dos papás que têm de comprar o cd às filhas). Lixo puro. Fast food musical.

Temos uma imagem romântica das bandas. Um grupo de amigos e conhecidos que se junta, gosta de música, toca umas coisas, e enfia-se na garagem para afinar o som. É essa a génese das bandas que povoam os géneros musicais não eruditos, grupos de pessoas criativas que se juntam para criar música nova, excitante e vibrante. Seja blues, seja jazz, seja pop, rock, metal, electrónica, hip hop, drum n' bass, fusão... é o espírito imortalizado na canção dos Clash, Garageland:
Back in the garage with my bullshit detector
Carbon monoxide making sure it's efective
People ringin' out
Making offers for my life
I just wanna stay in the garage
All night
We're a garage band
We come from garageland


Caríssimo blog, é o espírito rock n' roll. O que irrita nas boys-bands como os dzrt é que... são personagens de uma telenovela... e os produtores, com olho para o cifrão, decidiram pôr a vida a imitar a arte... quebrar as barreiras entre o mundo anódino e cor de rosa da telenovela. E ecce homo, eis que surge a banda, imagem sem conteúdo, chouriço sem carne, joia de pechisbeque, fast food para cérebros adormecidos pelos desertos culturais. Onde é que está a espingarda para matar elefantes, que tanto jeito dava agora para rebentar com os miolos a esta gente?

Mas termino por aqui, que o sol está brilhante e o dia radiante. Deixo-vos com as imortais palavras de The Magnificent Seven, também dos Clash, que já falavam em lixo cultural nos anos 80:
Plato the greek or rin tin tin
Who’s more famous to the billion millions?


Caríssimo, quem é mais famoso, quem é?