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1984: Um resumo comentado
Caríssimo blog:
Onde estavas no dia onze de setembro? Esta é uma das perguntas a que todos sabem responder. Lembro-me bem dessa tardinha, ainda vivia eu em Santarém, nos confins da planície ribatejana. Tinha acabado de almoçar um belíssimo prato de arroz de lentilhas (receita marroquina) e via um pouco de televisão enquanto esperava que a minha rapariga se arranjasse para ir até ao café. E nesse momento vi aquelas imagens na CNN que me ficaram gravadas na mente, com um dos edifícios do World Trade Center em chamas e um boeing a embater na outra torre do world trade center. Lembro-me da confusão dos jornalistas, impotentes para tentarem explicar o inexplicável, falando em acidente sem sequer pôr a hipótese de terrorismo. O resto das horas foram um borrão de imagens assustadoras, com a derrocada dos arranha-céus, a confusão das pessoas perdidas nas ruas, cobertas de poeira, as imagens horríficas dos desesperados que preferiram atirar-se das janelas a serem queimados vivos. Surpreendeu-me o dia seguinte, com a falta de comentários aos acontecimentos de dia 11. Fiquei surpreendido ao ver, na escola onde trabalho, as pessoas que normalmente discutem acaloradamente os acontecimentos do futebol ou os fait-divers do dia a dia a ignorarem deliberadamente os atentados de Nova York. Seria medo, ou incapacidade de compreender o acontecido? É certo que ao ver essas imagens, percebeu-se instintivamente que o mundo mudara.
Os acontecimentos que definiram o final do século XX foram a queda do muro de Berlim e a derrocada do império soviético. Para um mundo que viveu quarenta anos debaixo do espectro do cogumelo nuclear, para um mundo que viveu uma guerra fria entre dois poderoso regimes incompatíveis, os anos que se seguiram ao fim da união soviética foram anos de incerteza, mas de uma incerteza cheia de esperança. Falava-se no fim da história, olhava-se com esperança para o triunfo da democracia, e começava-se a procurar uma nova ideia, uma nova luta para definir a humanidade: o progresso social, económico e tecnológico, ou luta contra as crises ambientais. Os estados unidos impunham-se como a grande hiper-potência, após a derrocada dos seus rivais. As esperanças só eram manchadas pelo sujo reacender de questiúnculas nacionalistas na periferia da europa, nos balcãs. Mas, por criminosa que tenha sido a guerra na bósnia, não se comparava ao nível de aniquilação que ameaçou o mundo antes do fim da guerra fria.
Assim fomos vivendo, até que na manhã do dia 11, a história acordou violentamente e mostrou que, sem sombra de dúvidas, ainda não tinha chegado ao fim. E o mundo, que já se estava a esquecer dos terrores em que vivera nos anos após a segunda guerra mundial, descobriu um novo terror.
Insidiosa como um polvo de muitos tentáculos, secreta e desconhecida, surgia a ameaça do terrorismo mundial, incarnada na Al-Qaeda. Surgida das profundezas do afeganistão, terra de fanatismos religiosos, tendo como nebulosa agenda a criação de um califado islâmico e a derrocada do grande satã branco - os estados unidos. E sanguináriamente assassina, capaz de permancer adormecida durante anos e depois atacar, decisivamente, surpreendendo todos. Após o onze de setembro, o mundo mobilizou-se para lutar contra esta hidra arábica, encabeçada por um Emanuel Goldstein da era pós-moderna, o homem mais procurado e mais elusivo do mundo (se não percebem o que é que bin laden tem a ver com Emanuel Goldstein, vão ler o 1984 de George Orwell e descubram o significado de Goldstein). No ar pairou a ameaça de horrendos atentados, concretizados em Espanha e, nesta quinta-feira, em Londres. Fala-se de atentados abortados, de esforços secretos das agências policiais, invadiram-se dois países, e pelo mundo livre correm sérias tentativas de limitar liberdades, com o argumento de maior eficácia na luta contra o terrorismo. A intolerância racial e religiosa alastra, e o mundo bipartiu-se - nós, o mundo ocidental, próspero, livre e avançado, contra eles, uma massa indistinta de extremismo religioso, valores retrógrados e pobreza.
Caríssimo blog, ando por aqui às voltas com palavras, tentanto chegar a alguma conclusão, mas não consigo. O assunto é por demais convoluto. Nas guerras e lutas do século XX, havia uma dicotomia clara, bem contra o mal, democracia versus fascismo, capitalismo contra o império do mal. Nesta guerra do século XXI, não há dicotomias simples, valores de preto e branco. Os valores são cinzentos, tingidos com o vermelho do sangue dos mortos em atentados, com o sangue de iraquianos, mujahedins, soldados e fanáticos. Mas não nos enganemos: esta é a maior ameaça que a nossa civilização enfrenta. Tal como o império romano, temos os bárbaros à porta. Roma não resistiu; resistiremos nós?
Mas, caríssimo blog, tudo isto não passam de ideias. Já Spengler, décadas antes da Al-Qaeda, falava na ameaça à civilização ocidental (e Hitler inspirou-se em Spengler, e os livros de história contam no que é que deu a inspiração). Ideia que surgem perante os cadáveres mutilados de vítimas inocentes, pessoas como eu e aqueles que me rodeiam, que vivem as suas vidas e se dedicam aos seus trabalhos, longe de grandes ideias geopolíticas. Pessoas que são surpreendias, aterrorizadas e assassinadas por um punhado de bárbaros extremistas que, na impossibilidade de lutarem numa guerra aberta, escolhem como alvos gente inocente. As pessoas normais, que vivem o seu dia a dia, tornaram-se os reféns e as vítimas desta guerra. E atentados como os de Londres assustam por isso. São selvagens. Destroem vidas inocentes.
Na nossa mente, perante o horror do terrorismo, persiste o pensamento de "quando é que seremos atingidos". Sabemos que esta guerra é sem quartel e sem frentes de combate. Qualquer país é um campo de batalha em potencial. Enquato nos horrorizamos com os atentandos, enquanto nos compadecemos daqueles pobres londrinos, enquanto tentamos entender o seu sofrimento, temos medo. Medo por nós.