quarta-feira, 13 de julho de 2005

A Misteriosa Chama da Rainha Loana

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Umberto Eco | A Misteriosa Chama da Rainha Loana

Estou apaixonado pelo último livro de Umberto Eco, A Misteriosa Chama da Rainha Loana. O livro fala-nos das experiências de um homem, calmo bibliófilo de Milão, que após sofrer um AVC perde todas as memórias de si próprio. Não sabe quem é, nem conhece quem o rodeia. Tem de voltar a aprender a ver e a fazer todas aquelas coisas que, na vida, damos como garantidas. Apesar de ter perdido a sua memória sensorial, Yambo, a personagem principal, não perdeu a sua memória semântica. Embora os rostos dos familiares, da mulher e dos filhos não lhe digam nada, a sua mente revolve-se com citações literárias e a contemplação de livros levam-no a pensar se, através da recordação da sua história literaria, a sua vida de papel, conseguirá recuperar as memórias de uma vida. Assim, nos sotãos e gabinetes da casa dos seus avós, onde passou os anos formativos da sua juventude, Yambo reaprende-se relendo os livros da juventude, voltando a ouvir os discos da sua mocidade. Revisita assim o passado de uma Itália que foi nacionalista e fascista, revendo as voltas do mundo nas italianizações das personagens de banda desenhada, relebrando os horrores do fascismo nas canções patrióticas que memorizou. E questionando-se, sempre, como homem sem memória, sobre como realmente seriam aqueles tempos, no que é que realmente pensava. O que é que seria mais importante, o hino dos balillas (organização fascista infantil, semelhante à mocidade portuguesa) ou as canções populares da altura, cançonetas sobre singelas donzelas e vidas tranquilas?

Um segundo avc apanha Yambo embrenhado nesta selva de personagens de B.D., canções ouvidas em velhos discos de 78 rotações, jornais e revistas empoeirados e romances juvenis. Para se recordar de si, Yambo recria-se tentando perseguir o que sentia ao misturar Flash Gordon com Lili Marlene, ensaios sobre a itália fascista e o rato mickey, a ideologia militarista do regime e a honra exótica de Sandokan. E é na inconsciência deste seu segundo AVC que Yambo se redescobre, recordando episódios dolorosos da segunda guerra, redescobrindo a sua juventude idealista, repartida, à semelhança de Stephen Dedalus, personagem do imortal Retrato do Artista quando Jovem entre ideais de pureza e de pecado.

Como fio condutor, a chama que toca o coração de Yambo, está o rosto esquecido da primeira mulher que amou, e da qual reencontra partes em fotografias de actrizes dos anos 30 e nas outras mulheres que amou.

A Misteriosa Chama da Rainha Loana é um livro repleto de homenagens à cultura popular dos anos 30 e 40 do século XX, bem como um repensar da história italiana. E é também uma obra nostálgica, que através da descoberta da infância de Yambo nos leva a pensar na nossa própria infância, no que liamos e viámos, e como isso nos modelou de tal maneira que, em adultos, agimos condicionados pelas nossas descobertas infantis sem que nos apercebamos de tais condicionamentos. A Misteriosa Chama da Rainha Loana, de certa maneira, faz lembrar a obra tardia de Matisse, quando, quase cego e inválido, já não pintava, mas compunha imagens cheias de vida e beleza a partir de tiras rasgadas de papel pintado. A Misteriosa Chama da Rainha Loana é, também, composta de retalhos, os retalhos sempre desvalorizados que são o produto da cultura popular, cultura de consumo fácil e efémero.

A Misteriosa Chama da Rainha Loana faz-nos pensar que, por muito que valorizemos a cultura com letras maiúsculas, a cultura da ópera, música clássica, da literatura e arte rarificadas e inatingíveis, relembramos sempre com mais saudade a cultura popular. Porque se a cultura erudita de destina à imortalidade, a cultura popular diverte-nos. E ao olhar para trás, ao olhar para os anos de ouro da juventude, são essas as recordações de nos despertam as chamas interiores.