quinta-feira, 28 de julho de 2005
Cronologia do Inferno
The Third Reich Day by Day, editado por Peter Darman
Grange Books, 2004
Wikipedia | Nazism
Perdidos por entre as prateleiras das livrarias Bertrand deste país, encontram-se uns livrinhos bem em conta que alimentam uma velha obsessão minha - a fruição e contemplação de imagens de aviões, completa com quadros detalhando a potência dos seus motores, a capacidade destrutiva das suas armas e o empuxo dos seu jactos, em kilonewtons, claro. Nessas prateleiras, onde os livros sobre veleiros e os roteiros turísticos se encavalitam por cima de compêndios aeronáuticos sobre aviões de caça ou bombardeiros, encontram-se por vezes livros de difícil classificação. Como este The Third Reich Day by Day, editado por Peter Darman. Para livro de história, é demasiado sucinto e bem ilustrado. Está repleto de fotografias da época, que ilustram um livro que é uma simples cronologia dos anos do III Reich, desde os primórdios do partido Nazi ao apocalíptico final da IIª guerra mundial. Para livro dedicado aos hobbys da aeronautica militar, ou outros tipos de obsessões com materiais e equipamentos de guerra destinados ao público dos generais de sofá, é demasiado abrangente. O putsch de munique está metido no mesmo saco do que a construção do Scharnorst, imagens de panzers e bombas V1.
Sendo uma cronologia, o livro tem a interessante particularidade de não tirar conclusões. O prefácio e o posfácio apenas sintetizam o conteúdo do livro, sem nenhuma daquelas grandes conclusões sobre o horror nazi. Não tirando conclusões, obriga-nos a ler atentamente os resumos anuais dos acontecimentos do III Reich, em ordem cronológica, e obriga-nos a fazer as ligações e a tirar as nossas próprias conclusões. Com isso, este livro torna-nos agudamente conscientes do horror neurótico dos anos nazis, bem como das reais condições de ascensão ao poder do partido nazi.
Após a Iª Guerra, a Alemanha era um país profundamente destruído e humilhado. Verdadeiras legiões de soldados desempregados, que poucos anos antes tinham decidido dar a vida pela pátria na frente ocidental, viam agora de rastos a pátria pela qual se bateram, pela qual tantos companheiros tiveram mortes horríveis, estropiados na frente ocidental. Com o poder político debaixo de pesadas restrições exigidas pelos tratados de paz, forçados a pagar milionárias reparações de guerra e com a economia deprimida, os alemães viam-se no fundo de um profundo poço de onde a democrática república de Weimar não conseguia tirar o país. Foram essas frustrações, essas emoções de patriotismo falhado, que Hitler e os responsáveis do partido Nazi manipularam para adquirir apoio popular. A raiz da palhaçada nazi, com todos aqueles uniformes, desfiles militares, organizações paramilitares (como a Juventude Hitleriana, onde militou Ratzinguer, na altura rapaz de uniforme nazi e hoje papa) está na própria génese do movimento, criado a partir do descontentamento de ex-soldados que após a desmobilização não encontravam nada de melhor para fazer do que pavonearem-se nas ruas com uniformes semelhantes aos da tropa (mas com emblemas mais espampanantes) e provocarem confrontos com grupos de comunistas.
A Alemanha envergonha-se fortemente do passado Nazi, mas para seu eterno crédito a chegada ao poder dos nazis não foi a união nacional em prol do fascismo que a história do IIIº Reich aparenta. A sociedade em geral não dava o seu voto ao partido nazi, só começando a apoiar o nazismo após a depressão de 1929, que arrasou a sociedade alemã. É compreensível este apoio, perante o desespero de uma economia arruinada, fome e desemprego. E, mesmo assim, não foi um apoio generalizado. Os sectores mais tradicionais da sociedade alemã (os grandes industriais e o exército alemão) viam com desprezo os nazis, que eram considerados pouco mais do que um bando de arruaceiros desprovidos de ideiais (que o eram, efectivamente). A aliança entre nazismo e estes sectores da sociedade deu-se sob a sombra da outra ameaça totalitária que pesava sobre a alemanha, a do comunismo. Hitler apenas chegou ao poder através de votos, e mesmo assim só o conseguiu graças a negociatas políticas com as forças da época. A ascensão do nazismo não é uma história de uma gloriosa revolução fascista, mas sim uma amálgama de episódios degradantes de arruaças e confrontos nas ruas, retórica demagógica desprovida de ideiais e negociatas políticas.
Sendo assim, como é que o IIIº Reich se tornou possível?
Chegado ao poder, Hitler rápidamente tomou medidas que concentraram nas suas mão poderes ditatoriais. Para evitar a revolta da sociedade civil, rápidamente nomeou os seus sequazes para postos-chave no seio do estado e administração pública da alemanha. A tomada de poder por Hitler não passou de uma farsa, com a conivência dos industriais e das forças armadas, que apesar de desprezarem os nazis temiam ainda mais os comunistas. Vendo-se com as rédeas do poder nas mãos, os nazis começaram a transformar profundamente a sociedade alemã, com os seus festivais neo-pagãos de revivalismo de tradições germânicas, instituições destinadas a fortificar o nazismo na população (como a juventude hitleriana e a organização de tempos livres para os trabalhadores), propaganda, e um renascer da máquina de guerra alemã (um renascer lucrativo para os industriais que apoiaram a ascensão ao poder de Hitler). No fundo, uma aplicação massificada da velha máxima romana, pão e circo.
Como um cancro, o nazismo contaminou a sociedade alemã, que se viu totalmente envolvida, mesmo que a contragosto, no imaginário e instituições nacional-socialistas. O resultado desta farsa, o holocausto e o apocalipse que foi a IIª Guerra Mundial, e o surgimento de uma alemanha pacífica e profundamente democrática das cinzas das loucuras passadas, já são sobejamente conhecidos. A virtude deste livro é que sendo uma cronologia, obriga-nos a ver o nazismo como a progressão de uma doença que não foi atempadamente tratada. Como um cancro, começa pequeno e insidioso, e quando se deixa crescer um pouco alastra a grande velocidade, espalhando todos os seus tentáculos pelo corpo da sociedade alemã.
O nazismo e a sociedade alemã, obviamente, não podem ser resumidos a estas minhas pequenas conclusões. Houve outros factores a influenciar a ascensão do partido e a manter o seu poder. A propaganda nazi, espantosamente eficiente, ajuda a explicar o apoio tácito ou não dos alemães mesmo nos piores momentos da IIª Guerra. O regime nazi estabeleceu salários mínimos e criou condições para férias de qualquer trabalhador, que passaram pelo estabelecimento de parques de campismo (alguns dos quais ainda hoje em funcionamento) à criação de cruzeiros para trabalhadores. Nada mau, para os anos trinta do século XX. Estas medidas asseguraram o apoio do lumpen alemão (aquilo a que chamamos o povão). E, em termos de emprego, sempre havia a Wermacht, grande empregadora de homens. A conquista de lebensraum beneficiou todo o povo alemão durante os anos da guerra, com a pilhagem dos recursos dos paises invadidos a servir de combustível para a prosperidade alemã. É de notar que o regime só colapsou com a morte de Hitler. Até esse momento, poucas foram as vozes que se ergueram contra ele, e mesmo perante a alucinação final nenhum dos seus comandantes se atreveu a contrariar as suas ordens. É também de salientar que a sociedade alemã combateu a ascensão nazi, e mesmo durante o regime houve dissidências e movimentos de resistência, que foram bárbaramente esmagados.
Pessoalmente, sempre que leio ou vejo comentários sobre os alemães e o nazismo, penso que os alemães já foram suficientemente punidos pela loucura do nazismo. Sessenta anos depois do fim do nazismo, é mais do que tempo de avançar em frente, sem que as lições do passado sejam esquecidas.
Uma ilação importante a retirar neste princípio de século, em que alastram os ideiais liberais de puro economicismo e redução de custos, é que a demagogia alimenta-se da pobreza. Numa sociedade próspera, a doença nazi numa teria ganho raízes. Há medida que vejo os neoliberais a tentar desmantelar as estruturas sociais que asseguraram estabilidade e prosperidade à Europa, deixando-nos cada vez mais expostos às predações do capitalismo desenfrado, pergunto-me se não estarão a semear as condições para um perigoso ressurgimento de ideiais fundamentalmente semelhantes aos fascistas. É certo que os movimentos de extrema direita são profundamente desvalorizados e ridicularizados, mas será que perante a perspectiva de desemprego e evaporação de direitos sociais, aliada ao envelhecimento populacional e à pressão demográfica dos imigrantes não europeus, cujas consequências se irão tendencialmente agravar nos próximos anos, os europeus não regressarão aos ideiais fascistas e nacionalistas como forma de defender aquilo que percebem como seu?
Esta ideia assusta-me. Profundamente.