quinta-feira, 14 de julho de 2005

As horas perdidas

Diário de Notícias | Escolas vão definir tarefas de docentes fora da sala de aula
Portal dos Professores | Notícias de Educação

Caríssimo blog:

Ontem à noite falava-se. Aventavam-se hipóteses, brincava-se com a aberração que era a situação. E esta manhã confirmou-se. Uma concatenação cósmica de karmas negativos conjugou-se e abateu-se em força sobre nós, infelizes e desprevenidos docentes. Numa decisão que deixaria corroída de inveja a maior das damas de ferro (qual será, a britânica ou aquela alemã medieval que era instrumento de tortura? decidam, caríssimos e raríssimos leitores) a ministra da educação, cheia de fervor revolucionário, decidiu modificar os horários dos professores. Inspirada, quiçá, nos enganos finlandeses do magister presidente desta res publica sem bananeiras mas cheia de bananas.

Pois é, meus senhores, pensa o país cheio de encarregados de educação fartos de aturar os pirralhos, acabou-se a balda, senhores professores. As trinta e cinco horas são mesmo para cumprir. E têm sorte por ainda manter as vinte e duas horas lectivas semanais... por nossa vontade, seriam cento e sessenta e oito horas por semana, e ficaríamos enfim libertos da real chatice que é suportar os nossos queridos diabólicos terroristazinhos, tão engraçadinhos que eles são. E, por favor, senhores professores, não venham com tretas, com aquelas tretas de que as horas não lectivas servem para preparar aulas. Toda a gente sabe que as aulas não precisam de ser preparadas. É chegar e debitar. Agora, preparações, e tretas semelhantes. Nós bem sabemos que os senhores professores mal acabam as suas vinte e duas horinhas dão à sola da escola e vão para o café dizer mal de nós e dos nossos queridos querubins chifrudos, ou vão passear para os shoppings comprar tudo o que podem com os vossos altíssimos salários que são um peso desnecessário no erário público.

Que tal, caríssimo blog, esta minha incursão nas mentes da nossa espécie antagónica, a encarregadus de educaçãonus simplíssissimus?

No topo da sua pirâmide de secretários de estado e zelosos chefes de gabinete, rodeada de montanhas de papel como ídolos e ofertas votivas nos templos, a ministra da educação deve estar a sentir-se uma autêntica che guevara da teoria educativa portuguesa. Che guevara, que digo eu, a ministra deverá estar mesmo é a sentir-se uma lenine, ou, quiçá, uma estaline capaz de mudar toda a educação com um novo plano quinquenal de quatro anos. E por onde começar, por onde? Por essa classe convencida e preguiçosa que infesta como um vírus corrosivo as de outro modo perfeitas escolas portuguesas. Os professores.

Como professor, é-me indiferente ficar 22 ou 35 horas na escola. As planificações e projectos que faço na em casa também os faria na escola. Se tivesse espaço e materiais para isso. Que em nenhuma escola por onde passei tinha. Onde está o computador à minha disposição, e o espaço de trabalho - o gabinete, srª ministra? Não preciso de um tão grande como o seu, preciso mesmo de um. Porque isto de ir trabalhar para uma sala de professores apinhada não é ir trabalhar, é apanhar cotoveladas por falta de espaço, fumar mais cigarros do que aqueles que já fumo, e multiplicar exponencialmente as lamechices que se ouvem e falam sobre o desespero geral da educação hoje em dia, apimentadas aqui e ali com expressões de ódio à ministra e ameaças de aviões pilotados contra o arranha-céus da cinco de outubro. Qualquer professor profissional que queira fazer bem o seu trabalho passa seguramente mais horas do que o saudávelmente previsto a preparar o seu trabalho. Atrevo-me até a dizer que esta é uma daquelas profissões em que não há fins de semana, pois a cabecinha está sempre a trabalhar a pensar no que irá fazer na próxima semana. E acredite, srª ministra, a maior parte dos professores são profissionais dedicados. E continuam a sê-lo apesar das inúmeras tropelias revolucionárias dos ideólgos do seu minstério.

Caríssimo blog, a mim cheira-me um pouco a esturro, e não, não é o jantar que se está a queimar. Porque esta medida foi anunciada logo após os desastrosos resultados dos exames nacionais de matemática. Não há defesa possível da nossa parte, pois contrariar esta história dos horários só levaria a que nos acusassem de vampirismo pedagógico. Então, senhores professores, num momento de crise, com o resultado do vosso mau trabalho à vista, recusam-se a trabalhar mais para colmatar as deficiências dos alunos? Então para que servem? O esturro cheira com mais intensidade depois de ouvir alguns rumores de que o exame de matemática se centrava fortemente na geometria - a parte que, por estar no fim do programa, é menos abordada pelos professores, que passaram o ano a preparar os alunos no resto da matéria. Terá sido intencional, pergunto-me inocentemente com ar conspiratório?

Que bom. Os revolucionários iluminados do ministério, cheios de cursos superiores mas perfeitamente ignorantes da realidade do país real, lançaram mais uma revolução. Destinada, como todas as iniciativas criadas para aquele país utópico em que vivem os habitantes de gabinetes ministeriais, e falhar redondamente. Porque ter os professores 35 horas na escola não significa que trabalhem mais. São é mais duas ou três horas por dia de tempo perdido, porque sem condições não dá para fazer o trabalho, e o professor consciente fuma uns cigarros na confusa sala a abarrotar de professores, cumpre o seu horário, e findo este vai para casa trabalhar. A menos que o ministério ofereça portáteis ao corpo docente para que este tenha materiais para elaborar os obrigatórios planos, objectivos e relatórios dos projectos que terá de desenvolver. Ora esta, senhora ministra, é que era uma boa ideia. E nem precisava de ser um Toshiba Qosmio ou um iBook, qualquer máquinazinha com uma autonomia razoável de bateria e wifi incorporado. Srª ministra, já ouviu falar em pda´s? Já percebeu como eles poderiam ser úteis, substituíndo livros de ponto no registo de sumários e marcação de faltas, para além de todas as outras funcionalidades? Porque, srª ministra, se me vai obrigar a fazer o meu trabalho na escola (como deveria ser, não posso deixar de lhe dar razão), que condições me dá para o fazer? Ou está a pensar num retrocesso, aos velhos tempos dos manuscritos que demoram tempo a produzir, com um toque de modernidade que seria o uso de papel reciclado?