Crónica das Horas Perdidas
barnabé | O orgulho que resta à nódoa
abrupto
Tenho de conceder a elegância e o savoir-faire democrático dos responsáveis do governo civil de lisboa que autorizaram a manifestação de ontem. Sendo uma manifestação de extrema direita, assumidamente racista e xenófoba, cheia de nacionalismos com laivos de fascismo, ninguém levaria a mal a não autorização da manifestação. Pelo contrário, se calhar aprovariam a proibição de uma manifestação deste teor.
A liberdade de expressão é uma das ideias fundamentais de qualquer sociedade livre e democrática. E ontem, a elegância do governo civil de lisboa ao autorizar uma manifestação cujo ideário está em completa oposição às ideias "aceitáveis" nos media e nos discursos políticos e intelectuais, demonstrou que a ideia de liberdade de expressão está bem viva, e que realmente vivemos numa sociedade democrática. Liberdade de expressão significa liberdade para exprimir ideias. E isso significa que temos de deixar aqueles cujas ideias são tão contrárias às nossas - senão, a liberdade de expressão não passaria de uma hipocrisia destinada a proteger as élites bem-pensantes.
A manifestação de ontem foi uma lufada de ar fresco no panorama ideológico português. Agora, antes que me acusem de racismo, xenofobia, salazarismo, fascismo e outros ismos conotados com estrelas suásticas, marchas em passo de ganso e frentes nacionais, deixem-me dizer que discordo em absoluto das ideologias dos manifestantes. São nítidamente retrógradas e xenófobas - e os manifestantes que ontem gritaram "portugal para os portugueses" e outros epítetos do género irão envelhecer e reformar-se graças às contribuições dos emigrantes. A europa está a envelhecer e a diminuir a taxa de natalidade, e portugal não é excepção. A manutenção dos níveis de contribuição para os sistemas de segurança social de que tanto nos orgulhamos (e que os nossos governos tanto se esforçam por desmantelar) vai depender, no futuro, do trabalho dos emigrantes que escolherem a europa para melhorarem a sua sorte na vida. E o clássico argumento destes indivíduos de extrema-direita, o de que a emigração contribui activamente para um aumento da criminalidade, é um argumento errado e tortuoso - que só seria válido se não houvessem criminosos portugueses, e se todos fossem pacíficos, bem educados e amigos. Claramente não o somos.
Mas mesmo que sejam ideias abusivas e absurdas, mesmo que só apeteça não permitir, existe o direito de as afirmar em público. Com o estado geral de parcialidade e clientelismo que afecta o jornalismo em portugal (que pode ser fácilmente comprovado pelo tratamento dado aos professores - uns coitadinhos, quando é para salientar a incompetência dos governos, e uns preguiçosos privilegiados régiamente pagos, quando é para atacar a administração pública), saber que temos funcionários responsáveis nos governos civis que são capazes de defender os mais basilares ideiais democráticos deixa-me tranquilo quanto a este país. Se os meios intelectuais, mornos e entediantes, só defendem o ideário estabelecido; e se os média, capazes de influenciar a opinião pública, se rendem aos clientelismos económicos exigidos pelos investidores e anunciantes, as possibilidades de discurso reduzem-se; e a discussão de ideias fica reduzida à discussão de ideias socialmente aceitáveis (o que se torna especialmente grave sabendo que a definição de socialmente aceitável é definida pelos média, com todos os interesses económicos que estão por detrás).
Numa discussão, temos de saber ouvir até mesmo aquilo que nos revolta. Porque se temos o direito de dizer o que pensamos, outros também o têm.
A blogosfera vai comentando a manifestação da forma habitual. E eu, que também concordo que os manifestantes de ontem não passam de uns imbecis, não posso deixar esquecer que, numa verdadeira democracia, até os imbecis têm direito a manifestar-se.