segunda-feira, 20 de junho de 2005

Exames

Hoje foi dia de exames. Ás nove horas da manhã, milhares de alunos em todas as escolas do segundo e terceiro ciclo iniciavam nervosamente a prova de exame de português.

A princípio, não levei a sério a ideia de exames nacionais de nono ano. Fui influenciado pelo paleio contraditório que nós professores assumimos quando falamos de exames - por um lado, experiências inúteis e traumáticas, por outro lado uma forma de verificar a qualidade das aprendizagens e de estabelecer patamares que os alunos devem ultrapassar desenvolvendo esforços. Mas quando os alunos que vigiei entraram na sala, percebi-lhes uma seriedade que ultrapassa largamente qualquer conversa de café sobre o assunto. Os alunos estavam claramente nervosos, de olhar ansioso, roendo unhas e mostrando outros trejeitos de nervosismo. Mas não estavam dispostos a desistir, e enfrentaram com coragem os nervos que associamos aos exames. Nada mau, como rito de passagem. Nada mau, para endurecer psicológicamente as crianças e criar-lhes resistências eficientes contra as pressões das duras realidades.

O habitual argumento contra exames prende-se com a ideia de que as crianças não devem ser traumatizadas por experiências enervantes. Mas se elas não experimentarem situações enervantes, gradualmente, como é que se prepararão para os desafios da vida futura?

Foi o que me surpreendeu nos rostos dos alunos que fizeram exame. Estavam determinados. fizera, como se costuma dizer, das tripas coração e enfrentaram o desafio. Agora, só espero que as notas obtidas estejam ao nível do valor dos alunos que fizeram o exame.

Aceito um argumento contra as minhas observações: é provável que tenha apanhado aquela raridade, alunos empenhados e interessados, e assim vi algo que outros não viram. Mas como sou optimista, não penso que tenha sido assim.

Claro que o exame em si, e a forma como foi administrado, presta-se a comentários mais leves. Podia facilmente comentar a rigidez institucional, quase pompa e circunstância, da aplicação do exame - estávamos rodeados de tal seriedade, que por momentos pensei que algum esquecimento provocasse uma catástrofe de dimensões titânicas. Mas o que mais me deixou abismado foi a rigidez de picuinhice das regras do exame - tudo, até a diferença entre lápis e lapiseiras, pareceu ter sido pensado ao mais ínfimo pormenor, com o cuidado que geralmente se deixa para o modus operandi de reactores nucleares e outras substâncias altamente inflamáveis. Pensei em quem pensou em todos os pormenores, e ocorreu-me que uma personalidade de características anal-retentivas poderia ter sido forjada num ambiente de escola pública. Estou mesmo a ver: aquele aluno, que na primária e no ciclo era rotineiramente sovado pelos colegas e enxotado pelos professores, que no secundário passou a ser rotineiramente sovado pelos colegas e enxotado pelos professores mesmo sendo mais velho, e que no ensino superior só não era rotineiramente sovado pelos colegas e enxotado pelos professores porque, enfim, os colegas estavam a beber uns copos nas noitadas e os professores tinham mais do que fazer, sobreviveu graças a uma personalidade anal-retentiva e chegou a funcionário do ministério da educação. E vingou-se, obrigando-nos a regras altamente restritivas. Devia ter-lhe dado uns pontapés quando era puto, pensei eu, enquanto dava mais uma voltinha pela sala a verificar se nenhum dos alunos em exame se embrenhava em comportamentos fraudulentos (coitados, tinham mais em que pensar).

O momento do exame, felizmente, foi de completo tédio. Felizmente, porque se tivesse acontecido alguma coisa interessante seria um péssimo sinal. Se bem que a meio daquelas horas quase cheguei a desejar que alguns dos alunos tivesse uma descarga mental, ou se atrevesse a ter alguma atitude fraudulenta, só para quebrar o tédio...

Alheando-me um bocadinho das lutas entre classe docente e ministério da educação, ainda bem que estes exames correram bem. São mais um sinal que à profissão docente e à educação em geral estão a regressar valores que têm andado ausentes - os valores do rigor, do esforço, do empenho, do superar de patamares. Mas é curioso que nós, professores, que no nosso dia a dia, com os nossos alunos, tanto pareçemos pugnar por estes valores, logo criticamos iniciativas que os reforçam. Quando se fala em exames, é o que se ouve... críticas.