quinta-feira, 10 de março de 2005

Leituras: Snow Crash


SnowCrash

Snow Crash
Crítica ao Livro
Página da Editorial Presença

Nome de Código: Samurai, de Neal Stephenson, editado pela Presença.

Snow Crash é um livro que não se leva a sério. Mesmo nada a sério. O livro segue as aventuras de Hiro Protagonist (pronuciem o nome do protagonista e percebem a piada), um hacker afro-koreano em luta contra um cartel político-religioso que quer dominar o mundo a partir de uma linguagem escrita em sumério, linguagem essa capaz de alterar comportamentos. Snow Crash é o nome do vírus sumério, capaz de apagar a mente de hackers e programadores.

Com um título muito infeliz em português, Snow Crash parece à partida ser mais uma daquelas histórias que se dizem de ficção científica mas não o são, não passando de aventuras primárias. Mas há medida que vamos mergulhando no livro, começamos a perceber a verdadeira complexidade do romance. O romance nunca pretende ser mais do que um conto de aventuras; é assumido nisso. O que o destaca é a capacidade de imaginação futurista de Neal Stephenson, o que transformou Snow Crash numa obra de culto da ficção científica cyberpunk.

Parte do romance desenrola-se no Metaverso, um espaço virtual cibernético de avatares que interagem numa rede informática mundial com uma mega cidade como interface visual. Parece familiar? Quase parece estarmos a falar da Internet, do ciberespaço e da realidade virtual. Mas o livro foi escrito antes da explosão da internet - quando as discussões sobre espaços virtuais estavam reduzidas a núcleos duros de teóricos académicos. De certa maneira, Snow Crash inspirou alguns dos conceitos de espaços virtuais, hoje quase banais nos ambientes de jogo multijogador, que chegam a reunir milhares de avatares num único espaço virtual (pensem Ultima Online, Everquest, e muitos outros). O que era uma teoria sócio-informática e uma ideia literária transformou-se num rendoso produto económico.

A parte de Snow Crash que se desenrola no espaço real chega a tocar os limites do surrealismo, embora pareça assustadoramente possível. Influenciado pelas regras de um mercado livre e agressivo, o mundo (pelo menos o de snow crash) desagregou-se. A noção de país desapareceu, substituída por míriades de territórios suburbanos controlados por mega-corporações rivais. Existem duas forças policiais, ambas privadas, vários exércitos de aluguer, e a noção de franchising foi levada ao absurdo de até a própria mafia abrir lojas legais (sob o beneplácito do assustadoramente benevolente Tio Enzo). O governo apenas controla parcelas de território não franchisadas, funcionando como mais uma corporação. As pessoas vivem e deslocam-se entre condomínios fechados, circulando em auto-estradas rodeadas de lojas franchisadas. Parece uma ideia impossível? Circulem então pela IC-19 entre Sintra e Lisboa, e digam-me o que vêem…

E, claro, também há espaços sem lei.

No meio de tudo isto, vagueando pelo oceano pacífico, encontra-se a jangada. Ao centro, um antigo porta-aviões, rodeado de todo o género de embarcações. A jangada segue as correntes do oceano, percorrendo a àsia e as américas, agregando cada vez mais boat people, uma Tenochtitlan, uma Babilónia ou uma Hong Kong flutuantes. Um submundo de desesperados não franchisados que buscam no extremismo religioso um sentido para a vida. No seu centro, o porta aviões comandado por um magnata das telecomunicações que pretende controlar o mundo.

Mais não conto. Leiam o livro, que vale bem a pena.