0.
Airbus a dobrar, se bem que cruzar-me em três dias seguidos com este H145 não é bom sinal, é o tipo de transporte que queremos ter ao dispor da comunidade, mas com pouco uso.
1.
Por pouco, não me desmanchei a chorar quando o enfermeiro dos cuidados intensivos coloca a mão no meu ombro. "Pode segurar-lhe a mão, apesar de sedada, está a sentir a sua presença", diz-me. Aguentei-me, não por patetices de homem que não pode chorar, mas porque estes não são dias de carpir, mas sim de manter os nervos no lugar, custe o que custar, para bem de todos que me rodeiam.
Ontem fui surpreendido com a notícia que tinha a minha mulher nas urgências das Caldas da Rainha, incapaz de se mover e falar. Após análises, recebo o murro do diagnóstico preliminar arrasador: hemorragia cerebral, com indicação de transporte urgente para Santa Maria, onde chegou ao fim da tarde para ser submetida a neurocirurgia de emergência nesta madrugada (o longo tempo de espera prende-se com o quadro de patologia pré-existente dela, que é sempre delicado. Esteve sempre consciente e lúcida até à operação, e hoje quando a revi, estava sedada num necessário coma induzido, mas com resultados operatórios e prognóstico muito positivo.
Ainda não é tempo de cantar vitória, mas se a equipe médica faz transparecer que o pior foi evitado, é o que se precisa de ouvir.
Partilho isto, não pelo caso. É doloroso, mas pessoal. Coisas da vida. Mas é o contexto que me permite relatar uma experiência duríssima com o SNS, que mostra o quanto este sistema é essencial, e o tremendo trabalho dos seus profissionais.
Estes foram sempre inexcedíveis, calmos, compreensivos. Desde a médica que incorreu no desagrado do segurança das urgências ao levar-me a mim e outros familiares ao interior da sala de estabilização , onde a minha mulher aguardava transporte para Lisboa, dizendo "vão dar-lhe um beijinho e fiquem com ela até a virem buscar". A enfermeira do HSM que sai comigo das urgências para, à chuva, vir localizar a mãe e irmã da minha mulher, novamente porque "vamos colocar a sua esposa em SO, para aguardar subida ao bloco, e fiquem todos com ela até decidirem que pode entrar". Até ao enfermeiro da unidade de neurocríticos que me coloca a mão no ombro, quase levando a que as emoções que controlo saiam de enxurrada.
Pessoas inexcedíveis, competentes, de um humanismo paciente no trato com todos. Fazendo pequenos fechar de olhos a regras (que têm razão de ser) porque sabem o quanto a presença e proximidade são importantes para o doente e familiares.
A resolução rápida, mesmo em tempo de urgências entupidas, de um problema grave e potencialmente fatal. Nestes dias em que o SNS está a ser ativamente desmantelado por sucessivos governos, cujos pomposos anúncios de melhoria e racionalidade se traduzem em menos meios para todos enquanto nos vendem o canto podre de sereia da excelência privada, é mais acutilante ver a forma como os seus profissionais lidam com o impossível, a sua cortesia e profissionalismo. Um espaço onde todos têm direito a tratamento e cuidados.
É isto que queria exprimir. A utopia neoliberal de um país sem SNS, a contrastar com o tremendo esforço de um sistema depauperado, e que apesar disso tenta dar a melhor resposta.
Amanhã já espero encontrar a minha mulher acordada, ainda numa zona de cuidados intensivos (as questões crónicas de saúde dela requerem sempre cuidados extra). Ou talvez ainda não, ainda sedada mas com a certeza de estar estável e bem encaminhada.
Na memória, perdura o humanismo puro do enfermeiro que me coloca a mão no ombro, gesto simbólico e sintomático da atitude de todos os profissionais que me cruzei.
2.
A piada negra do dia: "olhe, não se assuste com o barulho dos alarmes nas máquinas da sua mulher, está tudo bem", diz me a médica da unidade de cuidados intensivos. Quem, eu, assustar-me, digo. Nada disso. Aliás, daqui a pouco estou a cair para o lado com tanto ping e ainda me metem numa cama aqui. "Não, não", observa a médica, "aqui não".
Demorei a processar. Até que me atingiu: ora pois claro, aqu estamos em neurocirurgia. Para ataques cardíacos não é este o piso. E não me parece que permitam confraternização entre pacientes de diferentes serviços.
3.
Os últimos dias têm-me ensinado o valor de ser Penélope. Tecer, para depois desfiar, voltar a tecer e desfiar, para que os pretendentes sejam mantidos à distância e não levem a sua avante.
Claro, não tenho um marido desaparecido no misterioso mediterrâneo e um bando de grunhos cheios de vontade de comer o meu pão, os meus bens e a minha pessoa.
Mas percebo a metáfora homérica - as adversidades não podem levar a melhor. Ceder não ajuda, carpir não resolve.
4.
Isto vai soar lamechas, mas percebi que só compreendi o real significado do conceito de amor quando vi a minha mulher entreabrir os olhos no despertar do coma induzido, sorrir, agarrar-me a mão e sussurrar. Palavras que há quatro dias eram ininteligíveis, mas agora soam numa voz quase normal.
Claro, depois sussurra-me palavras românticas como "hoje fiz cocó". Enfim. Não é bem fogo que arde sem se ver, mas também serve.
5.
Bolas, pá, resmungo, tenho três cursos superiores e não consigo abrir as barras laterais de uma cama de hospital? É só carregar num botão, diz-me a minha mulher, veterana destas andanças. Sim, mas qual botão e onde, penso eu em modo de burro que contempla um palácio. Lá consegui, e ajudei-a a sair da cama.
Momentos antes, silenciei a minha angústia com um sorriso e piadas parvas, ao vê-la chorar por sentir que não consegue articular as palavras. A mente está lá, felizmente (e bem topei a enfermeira a fazer rápidos testes cognitivos), mas há ainda muitos momentos em que a língua se entaramela e as palavras não saem. Sorrio, distraio-a, penso que nada é linear e mantenho o otimismo. Não posso seguir outro caminho, devo mostrar confiança, apesar de estar a lidar com situações que me são desconhecidas.
Ao vê-la fraca, na cama, com o cabelo rapado e nos trajes de hospital, vem-me à mente uma memória penosa. Recordo o meu pai, emaciado e carcomido pela luta de oncologia hematológica, naquelas vestes azul-claro com o logótipo do hospital. Sorrio, respiro fundo e vou limpar as migalhas do pastel de nata que ela está a saborear. Diga-se que uma das boas coisas do HSM é a cafetaria que está na zona central, a servir sandes deliciosas e sempre com pastéis de nata quentinhos e saborosos.
Ao sair da enfermaria opto por descer as escadas, sempre ajuda a queimar as calorias em excesso. Ou achavam que só ela é que comia pastéis de nata?
6.
Quase que consigo acertar o relógio pelo vozeirão. Na enfermaria de neurologia, há um paciente que por volta das cinco da tarde acorda da sesta e começa a berrar pelas suas meninas. "Anda cá", "chega-te cá", "vem cá, ó" seguidos de nomes femininos são o que se ouve em toda a enfermaria. Confesso que a princípio não pensei o melhor. Pensei para comigo que aquilo era um bom exemplo do que aconteceria ao masculinismo tóxico quando lhes dá uma macacoa neurológica, pensando que os chamamentos tonitruantes eram um destratar das pacientes enfermeiras da unidade.
Hoje, fiquei a saber quem realmente é este homem. Como sempre, a verdade é mais simples do que as especulações, e muito tocante. Trata-se de um pastor, e confesso ser impossível não me comover com alguém que acorda numa enfermaria convencido que está nas serranias, a chamar pelo seu rebanho e a apoquentar-se porque as ovelhas não lhe respondem.
Entretanto, entra uma das enfermeiras que comenta com a minha mulher que hoje está bem acompanhada. "É o marido", pergunta, mas olha novamente para mim, "ou o filho"? Comecei a rir-me e agradeci o elogio. Poderia levar esta confusão para o mal, vendo que a minha mulher, que já normalmente não é um primor de boa saúde, agora emaciada pelo internamento, de cabelo rapado e com cicatrizes, a falar com voz arrastada, parece mais velha do que realmente é. Ou posso levar isto para a malandrice, achando que sou um meio-centenário muito bem conservado, de jovem e bom aspeto, que passa bem por um pós-adolescente.
Obviamente, segunda hipótese. Têm dúvidas?