É preciso um masoquismo especial para se gostar de cães. A princípio é tudo muito bonito, os cachorros são uns fofos com aquele olhar terno, mesmo quando nos roem tudo o que podem cá em casa.
Depois crescem, e tornam-se companheiros de viagem e aventura, de passeios e caminhadas. Transformam o regresso a casa no fim do dia numa festa. Abraçamo-los quando estamos alegres, mas também quando estamos tristes.
E, de repente, damos por nós a perceber que o tempo passou. Que se o olhar é o mesmo, o corpo já cede. Deparamo-nos com o impensável pesadelo de dar descanso àqueles que durante anos, caminharam ao nosso lado.
No caso da minha Alice, o fim chegou mais cedo, induzido por um cancro que tirou anos de vida à minha querida cadela.
Lutou-se, esquecendo as despesas elevadas (mas temos uma veterinária sensata, que sempre equilibrou a qualidade do serviço que presta com o que cobra) e as dificuldades em encontrar alguns medicamentos necessários (o que se torna ainda mais chocante ao perceber que são medicamentos de uso oncológico humano, mas não suficientemente lucrativos para as farmacêuticas). Adiámos o inevitável por uns meses, com a esperança não em cura, mas estabilizar de doença crónica.
Mas o corpo não aguentou. O sorriso continuava o mesmo, o olhar denotava cansaço, mas o corpo cedeu.
Chegou o momento do inevitável, e só não dei antes esse passo porque gostaria que ela seguisse para o descanso rodeado das pessoas de quem mais gosta.
Hoje, foi a última manhã de Alice.
Por imenso que custou, com tudo o que dói, estive ao lado dela, a fazer-lhe as festas de que tanto gosta. Adormeceu enquanto lhe segurava a cabeça, senti um último suspiro.
Se ela sempre esteve ao meu lado, em bons e maus momentos, não podia fazer de outra maneira, doa o que doer.
É um buraco enorme no coração.
"É só um cão", diz-se. "E arranjas outro", confortam. Mas nunca é só um cão. E certo, claro que cá em casa haverá lugar para outro, futuro companheiro de aventuras e dia a dia.
Mas quem tem cães, sabe. Há sempre outro. Mas não para substituir o que nos deixou. Os que nos deixaram ficam para sempre nas nossas memórias. Não se substituem. Temos é coração largo para albergar novas memórias.
E. como somos masoquistas, sujeitamo-nos novamente ao ciclo. Sabemos como começa, sabemos que termina, que o tempo nunca será o suficiente.
Não há lógica, não é sensato. Mas é humano.
Ontem, a minha Alice ainda tinha umas horas de vida.
Deitei-me no chão, ao lado dela, a mimá-la.
Não havia, nesse momento, nada mais importante.
Hoje, a Alice teve ainda uma última manhã. Estava fora de questão ficarmos em casa a definhar, a fazer horas à espera da morte no consultório. Metemo-nos no carro e fomos à Ericeira. Aí, vi um vislumbre da antiga Alice, antes da doença a corroer, alegre a correr nas Furnas e a ladrar às gaivotas. Cheguei a pensar que me estava a precipitar, que ainda havia vida naquela cadela. Mas recordei-me que não conseguia comer há uma semana, exceto o que lhe forçávamos na garganta com uma seringa. Que passou os últimos dias nas lajes frias da casa, apática. Que uma saída à rua era em modo trôpega.
Tínhamos de ir à praia. Sob chuva torrencial, percorremos a Foz do Lizandro e S. Julião. Não deu para ela sentir o areal nas patinhas. Parámos na Samarra, para ela cheirar novamente o ar silvestre sobre a enseada. No regresso, connosco no silêncio pesado de quem sabia que era a última viagem da Alice, passeámos na aldeia da Mata Pequena. Um último passeio, por locais onde, noutros tempos, até muito recentes, muito caminhámos, passeámos e brincámos.
A Alice tinha de partir com memórias felizes.
Faleceu com a cabeça encostada na minha mão, senti o suspiro. Nunca iria abandonar a minha companheira de aventuras nesta última aventura. Restam as boas memórias.
As fotos são já dos tempos de luta contra a doença, até mesmo a última que lhe tirei, ainda esta semana. Recordam que, apesar de estar condenada à partida, valeu o combate.
Hoje, no passeio final, decidi que não haveria mais do que a nossa memória.
Devo um enorme agradecimento à Dr.ª Lara Pires e à sua equipa da Bichos & Companhia (Malveira), por tudo o que fizeram pela Alice ao longo dos anos. O linfoma venceu, mas a luta proporcionou-lhe um último verão, bem vivido com muitas caminhadas, praia, lagoa e mimos. Não se pode pedir mais.