André Costa (2024). Como sobreviver depois da morte. Lisboa: Quetzal.
Este livro foi das melhores, e mais aleatórias, surpresas literárias que tive este ano. De todos os sítios possíveis, cruzei-me com ele nos escaparates de um super-mercado da zona oeste (mesmo sendo um típico "livros é nas livrarias", a minha bibliofagia leva-me sempre a espreitar as geralmente sofríveis ou modistas ofertas entre os legumes e os produtos de higiene). Atraiu-me a capa, uma belíssima variação de Lia Ferreira sobre o Enterro do Conde de Orgaz, uma das obras que me fez perceber que sofria do síndrome de Stendhal quando a vi ao vivo na capela de Toledo que a alberga, e que dá aqui a base a uma capa que, depois de se terminar o livro, é ainda mais brilhante pela forma com interpreta na perfeição a narrativa.
O livro transporta-nos a Sulfúreo, uma aldeia perdida no interior profundo com o seu misterioso segredo: os mortos, lá, não morrem verdadeiramente. Não que fiquem dotados de vida eterna, se transformem em assombrações ou em zombies, apenas, ao morrer, os corpos dos filhos da terra desaparecem, e voltam a ser vistos regularmente a passear nos seus locais favoritos, falando e dando conselhos aos vivos.
É um mistério, sempre aludido e nunca revelado, que dá o tom ao livro. Terra onde o tempo parece passar de forma diferente, mais devagar e longínquo, a aldeia também encerra uma maldição. Mas não esperem que esta tem algo a ver com mortos vivos ou algo do género. Este é um daqueles livros cuja leitura desafia constantemente as expectativas, e este é um dos seus principais desvio.
As serranias em volta têm o infortúnio de serem ricas em minério de volfrâmio. Algo que traz à aldeia empresas mineiras, mas um desenvolvimento que se traduz em exploração laboral e na destruição progressiva do espaço natural, sujeito às depredações de uma engenharia que não se preocupa com o ambiente. Se a terra cresce, com mais casas, maiores igrejas, os espaços naturais que lhe deram o seu carácter são destruídos, contaminados, soterrados por debaixo da cupidez financeira. Os ciclos económicos trazem, quando estão em baixo, pobreza, mas quando estão em alta, a riqueza não chega aos pobres operários, condenados a arriscar a vida por tostões.
Ao longo do livro, assistimos à degradação progressiva do espaço da aldeia, que começa por nos ser mostrada como uma aldeia isolada dos finais do século XVIII, com os seus costumes e superstições, mas também um local de convivência entre natureza e homem, à progressiva modernização que traz consigo a contaminação e a desertificação espiritual.
Sente-se este com o grande tema do livro, refletindo após a leitura. Mas desenganem-se, como disse, este livro desafia as expectativas dos leitores, e a progressiva decadência do espaço é na verdade pano de fundo para um conjunto de histórias encadeadas, focadas nas vidas de várias gerações de famĺias que sempre lá viveram. Seguimos os seus sonhos, amores, desvelos, ilusões, paixões, desilusões, sempre num sedutor registo de suave realismo mágico. Os mortos vão fazendo as suas aparições nas vidas dos vivos, que iniciamelmente parecem envelhecer muito lentamente, mas à medida que o mundo isolado da aldeia se aproxima do resto do país, das modernidades contemporâneas, o tempo acelera, normaliza-se, e as vidas intemporais tornam-se breves.
Este livro é também uma viagem social sobre a nossa história como país, lida pela visão do impacto de acontecimentos e regimes vinda do país profundo. Inicialmente isolada pela distância, e com isso salvaguardada das convulsões polítícas e sociais, das guerras, golpes de estado e regimes, a aldeia acaba por se tornar um típico símbolo do portugal cinzento e sacripanta estado-novista, completo com as pessoas de bem que vivem à custa do suor do povo. Nem o colonialismo, primeiro como sonho idílico e depois como realidade dura, foge a esta leitura da nossa história.
Pensei, no início da leitura, que estava perante um belíssimo exemplo de ficção fantástica portuguesa, mas o romance extravasa este limites. Os seus recortes sobrenaturais tocam na nossa profunda tradição, as vidas dos personagens têm toques de realismo mágico, mas a narrativa desbrava o caminho que vai de um profundo matagal de isolamento aos danos trazidos pelo desenvolvimento descuidado. Apesar de toda a magia, a história é trágica, as vidas das personagens duras e amargas, mesmo quando parece haver esperança. No fundo, uma metáfora do que é ser povo, em Portugal.