Terry Pratchett (2003). Monstrous Regiment. Londres: Corgi Books.
Outro mergulho na vasta tela que é o mundo de Discworld. Este, num tom mais negro, e inspirado numa história que conhecemos bem, a das Guerras Peninsulares. Claro, sendo um livro de Pratchett, podemos sempre esperar aquele seu humor mordaz e certeiro. Mas aqui, os cenários de fantasia sublinham desigualdades e idiosincrasias do nosso mundo, não são as meras fugas escapistas que a série Discworld é eximia em ironizar.
Quando uma jovem rapariga se disfarça de rapaz e se alista no exército para ir combater os inimigos da sua nação, nem sonha em que berbicachos se irá meter. Os seus motivos são tudo menos patrióticos. A guerra corre mal ao país e a rapariga não tem grande vontade de ir lutar em nome de uma regente que provavelmente estará morta, e muito menos de defender uma pátria teocrática, onde a religião é pervasiva, a vida é ditada por um acumular de diktats religiosos (com o seu brilhante humor, Pratchet designa-os de "abominações"), e, claro, ser mulher é uma condição de opressão. Tudo o que a rapariga quer é encontrar forma de procurar o irmão, prisioneiro dos inimigos da nação.
Vai parar a um pelotão bastante sui-generis, composto por uma mescla de humanos e criaturas de fantasia. Os humanos são taciturnos e sempre com algo a esconder, um deles é acometido regularmente por alucinações político-religiosas. Os não-humanos incluem um vampiro, um troll e uma criatura tipo Frankenstein, especializada em curar e reconstruir corpos de forma muito literal. São liderados por um sargento à antiga, daqueles soldados experientes e quasi-imortais, e acabam por ter a dúbia sorte de ser capitaneados por um oficial inepto e sem experiência de combate, mas não totalmente inútil. O país está nas últimas, a guerra corre mesmo muito mal, apesar da propaganda constante a afirmar o contrário, e só restam os restos para engajar em combate.
Mas este pelotão irá revelar-se curiosamente aguerrido, e sortudo. Uma sorte ajudada por outras forças em jogo, que têm interesses estratégicos num fim à guerra que não implique a vitória das forças mais poderosas, e mobilizam espiões e jornalistas numa curiosa aposta neste pelotão como elemento inconstante capaz de desequilibrar a situação.
Na verdade, todos os elementos do pelotão partilham, sem o saber, do mesmo segredo. Há medida que as aventuras e desventuras se desenrolam, vamos descobrindo que todos os soldados daquela curiosa unidade são mulheres, incluindo trolls, vampiros e criaturas biológicas manufacturadas. Mulheres que têm em comum histórias que as levaram ao campo de batalha, desafiando as proibições teocráticas que as obrigam ao segredo, disfarce e subterfúgio.
Parte do drama é esta reflexão sobre o papel da mulher na guerra, mas também na sociedade, Pratchett sublinha bem as desigualdades que se mantém arreigadas através das desventuras destas heroínas ocultas, sempre com o seu cunho de ironia inesperada. O resto é a tradicional ideia de sociedades ossificadas que precisam de mudar e evoluir, mas estão presas aos velhos modelos e ideais.
Por vezes tocante, outras hilariante, mas sempre surpreendente, este livro é um valioso elemento da longa série Discworld.