Maria Archer (2021). Casa Sem Pão. Lisboa: A Bela e o Monstro/Rapsódia Final/Público
Depois de ter lido um livro algo saudosista do colonialismo desta autora, obra rara de edição brasileira que apanhei por acaso em alfarrabista, quis saber um pouco mais sobre ela, uma vez que as suas biografias não eram consentâneas com a ideia de defensores nostálgicos de imperialismo à portuguesa. Procurei e deparei com este romance, reeditado numa coleção recente de livros malditos pelo antigo regime. O ser um livro visado pela censura dá-lhe a garantia que será uma leitura progressista, crítica da sociedade do seu tempo.
Casa Sem Pão é um romance arrasador, profunda crítica a um modo de ser e viver de um certo estrato da sociedade portuguesa. Pela sua dureza, suspeito que Archer tem as suas origens nesse estrato, intui-se isso ao longo das páginas, mas estou a supor em demasia face ao pouco que conheço sobre a escritora. É um romance de infelicidades, de vidas desperdiçadas, de submissão a ideários conservadores onde conta mais o parecer do que o ser. Mergulhamos numa classe média com aspirações a ser alta, num Portugal que vai da viragem do século XX aos anos do pós-guerra.
O romance passa-se num meio social que ainda hoje nos é típico, uma certa classe média que aspira, ou julga, estar acima do seu nível social. Despreza todos os que considera inferiores, sendo também desprezada por aqueles que idolatra como tendo o alto nível certo que almeja atingir. Vivendo acima dos seus meios, depende de aparências, de mostrar o que se tem e fingir o que se é, mesmo que isso implique grandes sacrifícios. O moralismo é intenso, há um forte policiamento de atitudes e gestos, embora na verdade se permita tudo. Apenas, o que estiver errado, tem de ser feito de forma discreta.
A história centra-se em Adriana, que conhecemos como uma bela adolescente que vive uma vida recatada com o seu pai, viúvo, uma irmã perenamente doente e as criadas da casa, uma das quais a irá acompanhar para o resto da vida. Uma família com algumas posses, que se muda para a zona que hoje conhecemos como linha de Cascais, pela atração com a vida de sociedade da zona, um estilo de vida que tenta imitar a alta sociedade, sem realmente o ser. Adriana é uma jovem de fortes convicções, mas totalmente enrededada no ideário em que sempre viveu, o da respeitabilidade, do encontrar um bom partido para casamento, de uma certa santidade do lar. A sua vida começa a sofrer abalos quando o pai se casa com uma mulher mais nova (não por amor, mas porque, enfim, um homem tem necessidades e a nova esposa correspondia ao nível social) e nasce um irmão, que será a única personagem do romance que consegue escapar à tirania das convenções.
Os males de Adriana agudizam-se quando se apaixona por Eduardo, um desejável jovem da sociedade local, feita de passeios à beira mar e bailes no casino. As famílias não vêem com bons olhos o enlace, ambas consideram que a outra família não está ao seu nível, que lhes falta dinheiro e pedigree social. Mas há um fator que inclina a família do noivo, a possibilidade de uma herança de um tio de Adriana, emigrado no Brasil. Já Eduardo está fascinado pela noiva por representar tudo aquilo que ele não é, vê-a como um exemplo de rectidão, e não a deseja de outra forma. Como se dizia antigamente, uma mulher para casar, e não para levar para a cama. Eduardo é pouco mais do que um estroina, com o seu emprego num banco arranjado por cunhas, que alterna entre namorar as jovens casadoiras da linha de Cascais com jogatana e mulheres fáceis.
Tudo isto é óbvio, uma receita para a infelicidade, todos sabem que estão a cometer erros, mas o peso das conveniências e aparências impele-os. O casamento é um sacrifício em prol de uma futura fortuna, que nunca se materializará. As dificuldades económicas são constantes, porque há que manter o estilo de vida, a aparência de uma certa opulência, sem que realmente se tenham os meios para isso. Segue uma vida amarga, um casamento sem amor, filhos que são obtidos graças a subterfúgios da mulher, constantes tensões e ódios entre famílias. Não ajuda quando o homem, o chefe de família, prefere gastar o dinheiro que ganha em jogo e mulheres. Mas está tudo bem, desde que a aparência da casa se mantenha, e a esposa não descubra que o marido se mete com outras. Bem, na verdade, sempre o desconfia, o que a mulher não quer é que se aponte publicamente que tem um marido adúltero. As amarguras e ódios recalcados agudizam-se, com o passar dos anos, até chegar um final verdadeiramente dramático, de pura pobreza espiritual e assassinatos (que, sendo um toque de desespero que remata o livro, o culminar lógico de decisões que visam, acima de tudo, manter o nível e aparências, não é realmente necessario).
Entre as múltiplas leituras laterais deste romance, há uma que nos retrata as relações laborais no Portugal do século XX, onde era normal que empresários ou famílias de posses empregassem rapazes ou raparigas, mas guardassem os seus salários, assegurando-lhes que eles, patrões, estariam em melhor posição para ajudar os seus empregados a poupar, garantindo que no futuro, se necessitassem, lhes dariam o dinheiro acumulado dos seus rendimentos. Estão mesmo a ver por onde é que isto ia, um constante enganar com promessas, e muito dificilmente estes jovens iludidos, mas também sem alternativas, chegavam a ter nas mãos os rendimentos do seu trabalho. Neste romance, isso é simbolizado por uma das criadas de Adriana, que chega a sua casa ainda adolescente, e décadas depois já na meia idade, continua sem receber grande parte do que ganhou, mas aceita a situação porque se ilude, julga-se parte da família, quando na verdade é apenas um dos instrumentos essenciais para que a patroa mantenha aparências.
Não admira que o romance tenha sido considerado imoral pelos censores do estado novo. Arrasa modos de viver conservadores da sociedade portuguesa, mostra que o bem estar das ditas pessoas de bem assenta num ideário podre, onde não se olha a meios para manter aparências, enquanto se apregoa um moralismo e desdém por aqueles que não se submetem a estes modos de vida. É também um romance sem redenções, nenhum dos personagens ganha coragem para sair destes ciclos, e os ideários, a ideia de bons casamentos, de procurar rendimentos para manter aparências, de nepotismos e redes de influência que garantam empregos mas não trabalhos, de alardear um certo nível social, é algo que se transmite de geração em geração, os filhos irão repetir os mesmos erros e padrões de comportamento dos pais.
O romance foi originalmente editado em 1947, com edição censurada, li em versão fac-similada editada em 2021.