terça-feira, 22 de novembro de 2022

Tender is the Flesh


Agustina Bazterrica (2020). Tender is the Flesh. Nova Iorque: Scribner.

Se há livros metodicamente concebidos para serem chocantes, este é um dos melhores exemplos. Da primeira à última página, até à última frase, a narrativa está engendrada para manter o leitor num estado de choque contínuo. É uma leitura frustrante pela forma quase banal com que a linguagem nos expõe às piores atrocidades. 

Estive para abandonar o livro ao fim de poucas páginas. Não por especial ofensa às sensibildades (suspeito que se este livro se tornasse mais conhecido, a autora seria crucificada em praça pública), mas por o ter percebido logo. Todo o seu invocar de atrocidades grand guignol era uma óbvia metáfora à nossa sociedade contemporânea. Uma metáfora grotesca conseguida pela redução ao absurdo de ideias tão díspares como sociedade de consumo, janela de overton, desigualdades sociais e económicas, ou a propensão humana para o mal. 

No mundo de Tender is the Flesh, a alimentação humana sofreu uma mudança radical. Após suspeitas de uma epidemia viral global que contaminou a carne de origem animal, a humanidade virou-se para outra fonte de nutrientes. Mas não se converteu ao vegetarianismo. Muito pelo contrário. A carne humana tornou-se o elemento principal da alimentação humana. Mas não chamemos a isto canibalismo. Os humanos escolhidos para alimentação são considerados como gado, e como tal criados. Os antigos matadouros continuam em funcionamento, mas os animais que processam sáo agora diferentes. E, claro, o veganismo é desprezado.

Não interessa muito o como e o porquê de se ter chegado a este mundo na ficção da autora. É uma metáfora, reparem, que nos recorda como é fácil normalizar o intolerável, se a informação for apresentada da forma certa. As sociedades desconfiam que o suposto vírus animal, que levou ao extermínio total destes, até mesmo dos animais de companhia, foi uma mentira inventada por governos desejosos de controlar o excesso de população e os socialmente indesejáveis. Uma mentira que todos conhecem, mas não os faz reagir, porque os que beneficiam dela se habituaram à carne humana. E muitos aproveitam a nova ordem social para libertar pulsões psicológicas indizíveis noutros contextos. É fácil corromper uma sociedade, mostra-nos a escritora através da sua lente grotesca. Não me surpreende que um livro destes tenha saído da Argentina, esse país tão sacrificado nos altares da economia neoliberal.

Acompanhamos o gerente de um matadouro que tem a vida em crise. Perdeu recentemente o filho e e afastou-se da mulher. Só se mantém no trabalho porque precisa de sustentar o pai, que vive num asilo à espera da inevitável morte. Recorda a vida antes da transição para uma dieta de seres humanos, e o seu trabalho no matadouro é-lhe cada vez mais insuportável. Apesar de ver os humanos destinados ao abate como gado, o comer carne desagrada-lhe cada vez mais. Um dia, um dos seus clientes decide oferecer-lhe uma peça de gado da mais alta qualidade como prenda. E descobre-se em casa com uma mulher jovem, destinada para o abate. Estão mesmo a ver por onde isto segue, certo? Irá condoer-se da jovem, apaixonar-se, mas mesmo depois de um longo processo de quase rejeição do mundo onde vive, não se irá libertar dele (ser mais explícito seria um enorme spoiler).

Percebe-se logo o teor do livro às primeiras páginas, e o final antevê-se mal o personagem principal recebe a sua prenda indesejada. Mas o final é realmente surpreendente e contraria toda a expetativa do leitor. Percebe-se que o ser tão óbvio é intencional, a autora usa o livro para congeminar cenas grotescas duras de ler, que sublinham a desumanidade da sociedade que invoca. Temos momentos tão incómodos como os tarados que se candidatam a empregos no matadouro só para poderem assistir ao abate, estripamento e esquartejamento do gado humano. Há as seitas que se sacrificam, querendo ser voluntariamente abatidos para consumo, se bem que as alegres vítimas depressa se apercebem do seu erro nos momentos finais. Temos a dona de casa arrivista, que compra uma cabeça de gado (por esta altura já perceberam que quando este livro fala de gado, fala realmente de pessoas, vítimas criadas para abate, certo?), para a ir esquartejando viva aos poucos, ao experimentar uma nova moda culinária inspirada na morte chinesa por centenas de cortes. Ou o ambiente verdadeiramente depravado dos caçadores, muito felizes por a sua caça ser agora bípede.

O livro é incómodo, uma sucessão de imagens grotescas, extremamente violento. Mas, curiosamente, é um livro desapaixonado, escrito numa linguagem que banaliza intencionalmente a sua violência. É um sinal de como é fácil normalizarmos o impensável, basta ir abrindo caminho, invocando argumentos aparentemente lógicos, e passo a passo perder a sensibilidade. Tender is the Flesh é uma metáfora muito negra da sociedade contemporânea, das desigualdades económicas, dos resvalos políticos, da nossa incapacidade em ver além da sociedade de consumo. E, essencialmente, do perigo da normalização do impensável através da sucessão da quebra de barreiras morais via palavras melífluas. Algo a que quem observa o resvalo autoritário das nossas sociedades já há muito percebeu. Não caminhamos para o canibalismo, mas a degradação das perspetivas de futuro é nítida. O caminho de erosão e justificação é similar.