terça-feira, 28 de junho de 2022

O Mistério da Rua Saraiva de Carvalho


Reinaldo Ferreira (2017). O Mistério da Rua Saraiva de Carvalho. Lisboa: Pim! Edições.

Quando, numa noite escura, um vizinho com insónias espreita pela janela e vê uns vultos a arrastar um fardo que se parece suspeitosamente com um corpo nas imediações de um prédio na Rua Saraiva de Carvalho, isso é o despoletar de um mistério que se revelará ter proporções rocambolescas. O estranho acontecimento é apenas a ponta de uma complexa conspiração criminosa, que se revelará ser uma temível organização de espionagem. Um grupo de criminosos liderado por um português renegado que procura enviar para a Alemanha os segredos militares portugueses, vitais nos tempos da I guerra, e que para os obter recorre aos mais mirabolantes estratagemas. O grupo de facínoras será travado pelo incansável Gil Góis, um detetive amador que, intrigado pelo mistério da Rua, arregaça as mangas, investiga, enfrenta os maiores perigos, encontra o amor, e salva as vítimas da temível conspiração.

Não resisto a uma piada histórica: seriam realmente importantes os segredos militares portugueses para o império alemão em 1917, dado o conhecido estado lastimoso do CEP, enviado por uma jovem república que se queria legitimar mas não tinha os meios para o fazer?

Reynaldo Ferreira, repórter de grandes parangonas e verdades duvidosas, foi aquele que talvez entre nós se possa apelidar de verdadeiro escritor pulp. Os seus romances são a metro, com enredos convolutos e cheios de peripécias, mas que se percebe serem escritos sem uma grande visão de conjunto. Interessava encher páginas de jornais e manter o interesse dos leitores, e isso conseguia-se com peripécias constantes e inesperadas. 

Um ponto de interesse deste romance, originalmente publicado como folhetim em 1917, é começar por ser uma espécie de colagem epistolar, feita de vários pontos de vista. A história começa como um conjunto de cartas publicadas regularmente no jornal O Século, onde vários escribas dão o seu ponto de vista sob o misterioso crime, que poderá até nem ser crime e ter uma explicação banal. Umas começam a tornar-se mais prevalentes, escritas pelo tal Gil Góis, que vai narrando carta a carta as suas aventuras. Algo que acontece, suspeito, porque o ter textos muito diferentes torna a sequência demasiado confusa, e Reinaldo Ferreira não era assim tão bom escritor, experimenta a lógica fragmentada mas depressa condensa na narrativa tradicional. Embora, nunca perca o efeito suspense de cortar os textos a meio e encerrar com frases do tipo "não conseguimos publicar toda a carta por ser longa, mas continuamos na próxima edição". Tudo marcas de escrita a metro, e muito eficaz a manter a atenção. Cem anos depois, apesar do artifício ser óbvio, não deixa de nos arrastar.

Intriga uma certa visão de modernidade. A imagem que Reinaldo Ferreira coloca nas suas aventuras é a de um Portugal moderno, cosmopolita, onde as perseguições se fazem de carro e os personagens viajam habitualmente entre a Europa, vivendo aventuras  cosmopolitas, onde o país era palco de conspirações internacionais. É uma visão de escapismo modernista, uma fuga imaginária às realidades de um país pobre e atrasado. No fundo, o eterno sonho das nossas elites intelectuais, aqui utilizado para ficção popular escapista.