terça-feira, 8 de outubro de 2019

E Deus Criou A Internet…




Christian Huitema (1995). E Deus Criou A Internet… Lisboa: Dom Quixote.

Cruzei-me com este livro numa daquelas feiras do livro pop up que se especializam em vender livros consignados, devolvidos às editoras. Como bibliófago, é-me impossível resistir a estes espaços, e por vezes tenho sorte, apanho alguma pérola editorial esquecida. Este livro é um bom exemplo disso. Não deixem que o título vos engane, está muito longe de ser o tratado de tretoligia espiritual-New agey que o título, e a capa foleira, prometem.

O autor trabalhou nos grupos de trabalho internacionais que globalizaram a Internet, como representante francês. Isso torna este livro um artefacto de história do mundo digital. Mostra a experiência de alguém que esteve presente na génese da Internet global, das normas e protocolos de interconexão, mas também das questões políticas e económicas que pretendiam a adoção de sistemas de intercomunição digital feitos à medida de interesses governamentais ou industriais. Protocolos inferiores pela sua complexidade e limitações face à elegância do TCP-IP.

Este livro foi escrito no limiar da massificação da Internet. Vem dos tempos dos primeiros serviços comerciais que conectaram quem não dispunha de acesso institucional. Isto, se tivesse dinheiro para pagar as linhas telefónicas, o que era um problema nos primeiros tempos. Ler este livro com a distância que o dia de hoje nos dá é revelador. À época em que foi escrito, a web era um meio textual com alguma imagem e primeiras aplicações de vídeo. É interessante ler as palavras de um conhecedor do estado da arte, que nos fala de futuros desenvolvimentos na acessibilidade global, comércio digital ou cibersegurança. Com uma forte dose daquele otimismo inocente do dealbar do mundo digital. Para quem trabalhou na gestação da Web global, há um espírito libertário de cavalheirismo que é dado adquirido. Este não escapa a isso. Chega a ser dolorosamente inocente ao falar de cibercrime ou pirataria. Para quem está mergulhado em ambientes académicos, à percepção que haja quem não tenha escrúpulos sobrepõe-se uma certa inocência na crença da bondade humana.

Outro ponto que me despertou a atenção está nas observações que fez sobre a fiabilidade da informação online, que desde cedo nota que é um problema. Desde os seus primórdios que a web é um espaço aberto, onde todos podem publicar o que querem. O autor fala-nos da fiabilidade do que se poderia encontrar em newsgroups, um serviço online que hoje está praticamente esquecido (mas aposto que algures, alguém ainda é ardente utente da Usenet). O que escreve antecede em muito a liberdade de discurso na Web, na blogoesfera e hoje nas redes sociais, e está lá o reconhecimento que essa informação pode ser enviesada, falsa, e colocada para manipular opiniões. Fiel ao otimismo digital, não apresenta soluções, excepto uma inabalável convicção que cada utilizador, com a sua formação, seria capaz de filtrar a informação, e do poder das comunidades em estabelecer a fiabilidade do que era publicado.

Lá está, é sintoma daquele centramento académico. A massificação da Web cumpriu o sonho de conectar grande parte da humanidade, mas nem todos partilham do sistema de valores dos engenheiros e académicos. Hoje, o dar visibilidade a discursos enviesados, extremados e polémicos tornou-se um dos modelos de negócio que sustenta a economia digital, e está a tornar-se um problema social. As redes sociais dependem do rendimento da publicidade para lucrar, e para isso precisam de captar a atenção dos utilizadores. O método mais eficaz é valorizar o discurso violento, porque atrai a atenção, e gera circuitos que se retroalimentam. É por isto que promessas dos donos das redes sociais de limpar e restringir fluxos de informação enviesados ou falsos soam, bem, tanto a falso. Não foi com moderação que estes serviços os tornaram milionários.

Mas, nos anos 90, ainda estávamos muito longe da Internet de hoje. Foi um tempo de otimismo e esperança no poder do digital em mudar o mundo para melhor. Algo que, apesar dos problemas que lhe apontamos hoje, realmente fez. Isto não significa que os benefícios da vida digital nos deixem cegos perante as problemáticas que algumas vertentes da Internet despertam. Combatê-las é o passo necessário para manter a liberdade digital, algo que esteve presente na Internet desde os seus primórdios.