terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Fantasmagoriana


(2918). Fantasmagoriana: Aparições, Espectros, Assombrações... . Famalicão: CM Famalicão/Sistema Solar.

Quando se usa a expressão it was a dark and stormy night, a mente dos leitores mais cultos recorda logo essa famosa noite de tempestade na Suiça, em que o grupo de amigos que incluía Byron, Shelley, Polidori e Mary Shelley se reuniu para contar histórias de fantasmas e criar as suas. E daqui, reza o mito literário, nasceu Frankenstein. Na verdade não foi uma noite assim, foram bastantes, o verão de 1816 ficou na história por ter sido muito invernoso, consequências da explosão do vulcão Krakatoa, se bem me recordo (podia googlar, mas isto é texto mais livre, se estiver errado, apontem à vontade). E uma obra como Frankenstein tem muito mais do que a inspiração de uma noite a ler contos de horror. Resta saber que contos liam Byron e os amigos. A resposta está neste Fantasmagoriana.

Recolha de contos de terror alemães do final do século XVIII e princípios do XIX, não lista os seus autores, sendo indicado como contos recolhidos por um anónimo. As histórias são do mais clássico que se possa imaginar, sem terrores escatológicos ou criaturas horrendas. O sobrenatural manifesta-se com espíritos que ou são ominosos ou ajudam aqueles a quem aparecem a melhorar a sua vida. Os contos são muitas vezes moralistas, com a assombração a levar aqueles a quem aparece a regressar a uma vida regrada. A sensibilidade é muito antiquada, os personagens destes contos são sempre aristocratas da baixa nobreza, que vivem vidas confortáveis de algum ócio.

A edição portuguesa de uma obra quase esquecida nasceu das mãos da artista Adriana Molder. Em residência artística em Berlim, inspirou-se na leitura desta obra para criar uma série de retratos, que foram expostos em Famalicão com apoio da edilidade local. Uma tradução da obra foi lançada como complemento a este evento, incluindo alguns dos trabalhos plásticos.

O Amor Mudo: Não é, em si, um conto de terror, mas vive de muitos elementos do sobrenatural. Um jovem de boas famílias cai na pobreza após a morte do pai, sendo dissoluto, e isso não o incomoda muito até conhecer uma jovem por quem se apaixona. O problema está na mãe dela, que busca um bom partido para a filha, coisa que o jovem não é. Sendo industrioso, decide partir para recuperar as riquezas da família. Entre as suas aventuras e desventuras, que ainda lhe pioram a situação (os devedores do seu pai procuram todos os meios para se livrarem de pagar as dívidas), uma é especialmente curiosa. Viandante sem tostão, é escorraçado por um estalajadeiro sem escrúpulos para passar a noite num castelo assombrado. A assombração não se faz rogada, mas os atos do aterrorizante espírito são curiosos... limita-se a cortar o cabelo ao jovem, pedindo-lhe que lhe faça o mesmo em troca. Ao aceder a fazê-lo, o jovem liberta o espírito de uma maldição, e como recompensa recebe informações sobre um tesouro escondido. É o que lhe permitirá recuperar a prosperidade, e convencer a irredutível mãe da rapariga que ama que é digno da sua mão.

Os Retratos de Família: Um jovem aristocrata em viagem decide passar a noite numa aldeia, onde se depara com uma alegre tertúlia de aristocratas locais. Preferindo a conversa à música, passa o serão a ouvir e contar histórias de assombrações. Todas à volta de um mesmo tema, a de retratos assombrados. Ao contar a sua, sobre o retrato do antepassado de uma família nobre de que era amigo, assombração que cumpria a maldição de levar à morte todos os rebentos familiares que não aquele que mantinha a linha de fidalguia, despoleta uma série de eventos que o levarão a tomar posse do castelo da família amiga, encontrar o amor, e resolver maldições milenares que se abatiam sobre os aristocratas.

O Crânio do Morto: Quando um grupo de saltimbancos chega a uma aldeia, o senhor local convida-os a fazer um espetáculo especial. O líder destes acede, até porque pretende ficar naquela terra durante algum tempo. É um filho da aldeia, cujo pai fora nela o mestre escola, e aproveita a digressão dos saltimbancos para regressar e reclamar a herança que o seu falecido pai, desavindo, lhe negou. O espetáculo envolve um momento de fantasmagoria, em que o líder dos saltimbancos irá surpreender os convivas com ventriloquismo. Mas não utilizará um boneco, irá convencer o público que é uma caveira que está a falar. Ao segurar a caveira, o ventríloquo é atingido por uma assombração. É visitado pelo espírito do pai, cujos restos segura. Assustado e arrependido, apercebe-se dos erros da sua vida. Abandona a vida de saltimbanco, desiste de reclamar a herança, e dedica-se a seguir o caminho que lhe foi traçado. Como recompensa, a sorte sorri-lhe. A jovem a quem o seu pai tinha dado a herança apaixona-se por ele.

A Noiva Morta: Numa estância de sonolenta época balnear, um colorido aristocrata italiano deleita os seus companheiros com histórias mirabolantes. Numa, narra os estranhos acontecimentos que sucederam à família do seu melhor amigo. Ao visitá-lo ao fim de muitos anos de separação, descobre-o de luto por uma das suas filhas gémeas, recentemente falecida. Pouco tempo depois, surge no castelo um jovem italiano, que se propõe pedir a mão da outra filha. Os amores sorriem, mas há ali mistério. O aristocrata sabe que o jovem esteve recentemente noivo, e não compreende como é que este se desligou da noiva e se apaixonou por outra rapariga. O mistério adensa-se quando o jovem confessa que a conheceu em Paris, algo que é impossível. Uma das raparigas já tinha falecido, e a outra estava no castelo, de luto. Claramente havia ali mão sobrenatural, mas os esforços do aristocrata para perceber o caso não dão frutos e o casamento realiza-se. Uma cerimónia com fim trágico, com o falecimento do noivo, e a revelação do mistério, de acordo com as superstições do povo. A família foi vítima de um espectro, espírito de uma noiva abandonada que encarna o aspeto de belas jovens falecidas para interferir em noivados e levar o noivo à morte.

A Hora Fatal: Poucos dias antes do seu casamento anunciado, uma jovem é tomada por uma profunda melancolia. Às amigas, preocupadas, confessa a razão do seu mal estar. No passado, a irmã mais nova viveu estranhas experiências sobrenaturais, e deixou algumas palavras que se revelaram tragicamente proféticas. A sua última premonição tinha a ver com a irmã mais velha, que, dizia, morreria três dias antes do anúncio do casamento. Anos depois, ao aproximar-se a hora fatídica, é o espírito da irmã que irá levar consigo a jovem, perante o espanto das suas amigas.

A Aparição: Uma jovem decide casar-se, contra vontade do seu pai, que fora visitado por espíritos que lhe deram uma sensação funesta sobre o enlace. Mas, após os ardores dos primeiros tempos, o amor começa a desvanecer-se e o marido parte em viagem, sozinho. A jovem não demora muito a receber a notícia que este falecera de doença, encontrando-se viúva. No luto, regressa para junto do seu pai, agonizante. No seu coração, mantém-se um anseio por voltar a ver o espírito do marido. E uma noite, tal acontece. Após o terror do momento, a verdade virá ao de cima. Afinal, o homem não tinha morrido, apenas falseado a sua morte com ajuda de amigos. Cansado do casamento, queria livrar-se da esposa sem despertar as ignomínias do divórcio. Abandonou o seu país e passou a viver sob outro nome, mas a distância fê-lo recuperar o sentimento. A única forma de regressar sem despertar atenções indesejadas foi fingir que era um espírito. A história tem um final feliz. A jovem, feliz por ter recuperado o marido, parte com este para outras paragens.

O Quarto Cinzento: Um jovem funcionário regressa para junto de alguns amigos de infância. A visita prolonga-se e terá de passar a noite num quarto de uma zona mais solitária do castelo. Este, conhecido como quarto cinzento, tem fama de ser assombrado pelo fantasma de uma jovem noviça a quem, após ser violada por um senhor feudal, é-lhe recusada a entrada no mosteiro por deixar de ser virgem, e amaldiçoada por se ter suicidado. O jovem irá passar uma noite de horror, com esqueletos e aparições que surgem na escuridão.

O Quarto Negro: Três amigos reúnem-se diariamente na sua tertúlia literária. Desta vez, discutem histórias de fantasmas. Um, médico, conta a sua experiência no castelo de uma família a quem foi acudir a filha, com uma noite passada num misterioso quarto negro onde, ao bater da meia noite, lhe surge um medonho espectro de mulher, que lhe deixa uma madeixa de cabelo sobre a cama. Ao mesmo tempo, a jovem doente falece, e desaparece-lhe uma madeixa. Outro, escrivão, conta-lhe uma história muito semelhante, onde alguns dos personagens se repetem, mas esta tem outros contornos. Tratava-se de um amor ilícito, e o quarto com fama de assombrado fazia jeito para o casal. Tudo muda numa noite, quando um visitante passa a noite nesse quarto, e se depara com um mecanismo que dá acesso a outro quarto e vê o que lhe parece ser o fantasma de uma mulher. O que de noite parece ser assombração, de dia é revelado como maquinação. Finalmente, estes tertulianos lêem o conto O Quarto Cinzento, mas escrito de outro ponto de vista. Aqui, a assombração que tanto assustou a personagem do conto anterior é revelada ser uma partida pregada pelos filhos do dono do castelo.