segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

EuroNovela



Miguel Almeida (2018). EuroNovela. Projeto Adamastor.

O euroceticismo é abordado num tom de comédia futurista, num livro clássico da FC portuguesa. Publicada no final dos anos 90 na lendária coleção de capa azul da Caminho, pega de forma brilhante naqueles medos de hegemonia germânica e subjugação do resto da Europa aos ditames de uma única sociedade que, ainda hoje, é um dos mitos de medo que associamos à UE. Algo difícil de desmistificar, especialmente nestes dias pós-troika, em que a Alemanha assumiu um papel preponderante na criminosa politica de austeridade. No entanto, Vale de Almeida não poderia adivinhar esses tipos de supremacia, e segue um caminho mais ortodoxo.

Imagina um futuro próximo em que a Europa impera sobre a europa, uma sociedade de castas onde no topo estão os altos funcionários da UE, coincidentemente todos germânicos. É uma união que propaga a amizade e intercompreensão entre os povos colocando-os no seu lugar (adorei o pormenor novilinguista de incentivar os intercâmbios impedindo os cidadãos de sair dos seus países). Nessa europa estratificada, os portugueses são um povo intermédio, úteis em cargos médios, vistos como superiores aos europeus de leste. Noutro pormenor curioso, piada óbvia sobre o afã normalizador da Comissão Europeia, os nomes étnicos foram simplificados para dois ou três por nação. Há quem ainda se recorde dos velhos tempos, e das antigas línguas, substituídas por uma lingua normativa com muito de alemão. É um mundo diferente, onde os países da UE são desindustrializados para não prejudicar as indústrias alemãs, áfrica está a ser consumida por epidemias, o fim da dependência do petróleo aniquilou o mundo árabe, a Rússia desagregou-se, o Japão parece estar a construir um império na ásia, e o poderio americano afogou-se em hiper-inflação.

O resto é uma narrativa alucinante onde portugueses se tornam o grão na engrenagem de um grande plano europeu, arquitetado por alemães. Ostensivamente falam da colonização de asteróides, mas o verdadeiro plano é o de lançar a conquista do leste, anexando as vastas paisagens da Bielorússia, Ucrânia e Rússia, países lançados no caos e transformados em terreno de caça de hordes bárbaras. É a nova europa, prometida por um novo Reich, que na novilíngua do romance é apenas um benévolo organismo que visa a melhoria das condições de vida nos territórios pobres do leste... embora na verdade seja uma estratégia de conquista, aculturação, e transformação das populações em servos agrícolas para alimentar uma Grande Europa cercada a sul e a leste por hordas bárbaras.

Divertido, acutilante, brincando muito bem com mitos culturais, é um daqueles livros que só não se lê de uma assentada porque o tempo livre não abunda. Li-o na reedição em e-book do Projeto Adamastor, que recuperou esta obra perdida da FC portuguesa.