sexta-feira, 14 de julho de 2017
Todos os Dias São Meus
Ana Saragoça (2012). Todos os dias são meus. Lisboa: Editorial Estampa.
Este é um livro exímio em defraudar expectativas. Começa logo pelo título, uma citação de Alberto Caeiro a remeter para o cor de rosa da chick-lit. Viramos a página e o potencial cor-de-rosa desvanece-se logo com um cadáver descoberto no elevador de um prédio lisboeta. Estaremos perante um policial clássico, onde até ao virar da última página ficamos em suspenso para descobrir a identidade do assassino? De certa forma, porque parte do livro estrutura-se à volta de uma morte anunciada, levando-nos a conhecer a vítima, uma mulher que sempre sentiu não fazer parte do mundo que a rodeia, encontra uma voz inesperadamente poderosa no mundo digital, e manipula um homem para a assassinar.
A busca das razões para a morte funciona como fio condutor para o lado mais divertido e acutilante deste livro: a forma como Ana Saragoça caricatura tipos especiais da fauna humana lisboeta. Mordaz e corrosiva, mostra-nos o absurdo dos tipos sociais com que nos cruzamos todos os dias no devir urbano. Não falha uma, desde a porteira metediça e cheia de opiniões ao divorciado com filhos complicados e namorada que é artista boémia graças ao dinheiro da família, sem esquecer o idoso solitário que passou a vida a lutar para que os filhos fossem longe ou os emigrantes de leste que se acumulam num apartamento arrendado. É, talvez, o verdadeiro espírito deste livro, onde a história de uma morte se torna uma desculpa para uma crónica mordaz de costumes.