quinta-feira, 2 de julho de 2015

As Furtivas Pegadas da Serpente


António de Macedo (2004). As Furtivas Pegadas da Serpente. Lisboa: Caminho.

António de Macedo leva-nos neste livro por dois caminhos que se cruzam de uma forma que não esperamos. Num deles somos colocados nos bastidores da realização de um filme, explorando as tensões entre actores, argumentistas e um realizador cujo maior desafio é encontrar forma de transpôr a sua visão interior para o ecrã. No outro caminho mergulhamos na história que o filme irá contar, uma visão que invoca fantasias mágicas sobre Frei Gil de Santarém. Envelhecido numa Paris cada vez mais sob o domínio de inquisidores dispostos a curar pelo fogo as epidemias de dissidência herética, este médico conhecedor das artes ocultas quer libertar-se do pacto que em tempos estabeleceu com um proto-mefistófoles enquanto se vê envolvido nas tramas dos inqusidores dominicanos, que condenam à fogueira uma princesa cátara que se refugiara em sua casa.

Como leitores, cremos que as duas linhas narrativas irão colidir nalgum momento onde as realidades se cruzam. Mas não, estamos a ver o filme dentro do livro, a visão que o realizador quer fixar no celulóide. Só nos apercebemos disso quando algumas fantasmagorias sonoras parecem repassar do presente ao passado, até compreendermos que não estamos a ler duas narrativas paralelas mas uma só, vista sob uma outra forma de ver. Macedo homenageia aqui a figura faustiana das lendas e tradições portuguesas, um médico que firmou um pacto com o demónio e, envelhecido, se dedica à penitência para derrotar o demónio. Texto que, como observa no livro, antecede em muito a história do Dr. Fausto que viria a inspirar Marlowe e Goethe. Como observa (e muito bem), não tivemos escritores deste calibre a elevar as nossas lendas e tradições aos píncaros dos cânones literários. Esta contribuição do romancista e cineasta que tanto se dedica ao fantástico nas artes recorda-nos aquelas histórias que esquecemos, perdidas no interminável fluxo da cultura contemporânea.

Confesso que me escapa a compreensão do título. Serão as furtivas pegadas uma referência à capa de bonomia que oculta a violência sádica e sede repressiva dos inquisidores? Das tentações da carne que acometem, ou parecem acometer, alguns dos personagens do livro? Referência à luta interminável do demónio untuoso, que vê em cada alma capturada mais uma ferida no corpo divino que deseja, acima de tudo, esquartejar? Nenhum dos personagens deste livro é imune a tentações, sofrendo as suas consequências. Tal como cada um de nós.