quinta-feira, 9 de abril de 2015
Insonho, Durma Bem
Valentina Ferreira et al (2015). Insonho, Durma Bem. São José dos Pinhais: Estronho.
Discutir se é possível um fantástico de raiz na tradição portuguesa é discussão discreta que de tempos a tempos vem ao de cima. Nisto os mais veteranos andam fartos das referências ao Amadis de Gaula e às sílfides do Tejo e os mais novos, inspirados pela sua dieta de fantasias épicas e urbanas, encolhem os ombros. Mas que é possível olhar para as nossas lendas e tradições e com isso criar histórias cativantes, prova-o esta surpreendente antologia brasileira que desafiou autores portugueses a levar os mitos portugueses aos brasis.
Nos contos, Carlos Silva, Vítor Frazão, Ana Luiz e Miguel Raimundo mostram muito bem que é possível olhar sem condescedência ou nostalgia para o espaço mental do nosso interior. Com especiais distinções aos contos de Silva pela riqueza etnográfica da linguagem e de Raimundo pela historiografia que o alicerça. Os restantes não ficam muito atrás, mas não se centram tanto nos elementos tradicionais, utilizando-os como recurso para outro tipo de narrativas. Algo que funciona, mas me parece afastar-se um pouco do espírito da obra.
As recolhas etnográficas andam cheias de curtas lendas de maldições e princesas, de criaturas que assombraram os ermos. Suspeito que boa parte dos praticantes portugueses do fantástico andem fartos de etnografias, mercê dos estudos superiores literários, e que por isso lhes dediquem tão pouca atenção. Ou posso estar engando. Uma nota para a estética cuidada da obra, que sublinha o seu ambiente de fantástico tenebroso.
Ao Meio-Dia: Carlos Siva mergulha-nos directamente nos mitos da ruralidade isolada das serranias numa história trágica. Um monstro, que não é realmente um monstro, está condenado por uma maldição de ciúmes a sugar a vitalidade dos campos cultivados para manter viva a mulher que ama, vítima do mau olhado das meninas casadoiras de uma aldeia serrana.
Duelo de Lendas: Valentina Ferreira traz-nos um pouco das lendas das criaturas que assombram a noite madeirense, com um sonho negro que se transforma numa realidade catastrófica.
Na Escuridão: Vítor Frazão leva-nos às lagoas perdidas nas altas serranias da Serra da Estrela, numa história que recorda um enredo clássico de filmes de série B. Um jovem incauto não acredita na sorte que tem ao partilhar uma aventura com uma bela e desinibida rapariga que o leva a mergulhar à luz da lua, mas sob as águas geladas esconde-se um segredo milenar que as lendas locais interpretam como uma maldição mourisca.
A Voz de Lisboa: André Pereira liberta numa Lisboa abalada por um terremoto um adamastor próximo dos grandes anciães lovecraftianos. Criatura que se ergue das lamas do rio Tejo para purificar a cidade com a força das águas.
A Noite em que o Bicho-Papão encontrou Kafka no cimo de um telhado: Francisco Fernandes mistura o horror erudito da Metamorfose de Kafka com os terrores infantis do bicho-papão que espreita na noite para devorar os meninos mal comportados.
Sant'Iroto: Ana Luiz revive memórias de uma infância de férias passadas no campo, das maravilhas do contacto com a natureza vista pelos olhos de uma jovem rapariga irrequieta, que não compreende as rezas que saem da boca dos mais velhos até se cruzar com uma criatura capaz de percorrer seca e meca num sopro de corrida. Criatura essa que a menina apenas consegue esconjurar com uma reza intemporal.
Por Sete Encruzilhadas, Por Sete Vilas Acasteladas: Miguel Raimundo leva-nos ao passado intemporal ribatejano e às lendas e tradições sobre criaturas amaldiçoadas que se transformam em lobos nas noites de lua cheia. É um conto que foge ao óbvio horror com uma forte dose de piedade pelas criaturas, vítimas de maldição, e que encontrarão a redenção no amor encontrado por entre as densas florestas do interior profundo das serranias portuguesas.
Ao Sexto Dia: As maldições que recaem sobre as mulheres perdidas, aquelas que ao ouvirem o seu coração caem nas más graças da sociedade, são o tema do conto de Inês Montenegro. Uma série de mortes misteriosas abala uma aldeia nortenha. A assassina é uma mulher bígama, amaldiçoada por um dos maridos, e a maldição irá transmtir-se à sua irmã, que vive amancebada com o pároco da aldeia.
Sangue, Suor e ... Unhas: crimes misteriosos, castelos assombrados, vilórias históricas que encerram mistérios medievos, túneis secretos e um padre intrépido que com ajuda de um corajoso inspector descobrem que a lenda local assenta na história esquecida de um alquimista que, em tempos longamente idos, descobriu o segredo da imortalidade. João Rogaciano encerra de forma muito divertida esta notável antologia.