Luís Corredoura (2014). Lusitano Fado. Queluz: Marcador.
Uma das coisas que emergiu no momento contemporâneo que atravessamos foi o cansaço com a ordem habitual das coisas. Especialmente no que toca ao rareficado mundo da política e alta finança que controla este país. Sempre soubemos que são sempre os mesmos a beneficiar do bem comum. Políticos de discurso portentoso, sorriso fácil e olhar esquivo sustentados por eminências cinzentas que financiam a sua elevada prosperidade manipulando mercados e leis. São os de sempre, nomes sonantes de recorte aristocrático, antigas famílias de discreta dinastia cujos avós fizeram noutros tempos o mesmo a que os netos se dedicam. Corrupção de luva branca assumida como respeitável por ser entre cavalheiros, rapacidade na gestão de um país onde há sempre forma de usar os fundos públicos para favorecer os amigos. Por cá sempre foi assim, pensamos, desde os leais sicofantas reais que iam à Índia para enriquecer com facilidade que são tão bem descritos por Gil Vicente. Se calhar, os antepassados dos nomes sonantes de hoje.
Ao ver um país sob assalto, com os indicadores de desenvolvimento a recuarem duas ou mais décadas, com os direitos honestamente adquiridos pelos cidadãos a serem anulados em nome de uma pretensa eficiência financeira, ao ver um país asfixiado para assegurar a contínua prosperidade dos mesmos de sempre, começamos a fartar-nos. Talvez não o suficiente. Deveríamos fartar-nos um pouco mais. Todos sabemos como são as coisas, todos conhecemos as óbvias mas difícies de provar promiscuidades entre negócios e política. Mas já não somos o país do ignorante zé povinho. Evoluímos. Educamo-nos. Desenvolvemo-nos, apesar dos contínuos esforços em contrário das élites nacionais. Mas ainda continuamos passivos, submissos aos senhores doutores sem título académico que passam por nós como homens superiores, encarnações contemporâneas do pior dos antigos senhores feudais. Troque-se o cavalo por um automóvel de luxo e o castelo pela villa em Cascais, que a rapacidade se mantém a mesma.
É este sentimento de segredo conhecido por todos e de revolta pelo estado das coisas que é sublimado, ou talvez exorcizado, por este surpreendente thriller de Luís Corredoura. Este autor foi, para mim, a grande surpresa do Fórum Fantástico de 2013. Recordo olhar para o programa e pensar que a apresentação de um livro intitulado Portograal era uma boa altura para ir perscrutar com atenção a banca da Dr. Kartoon, fumar um cigarro e dar dois dedos de conversa com outros fãs da literatura fantástica. Quando voltei fiquei surpreendido por um autor que explicava eloquentemente o que poderia ter acontecido caso as divisões alemãs invadissem Portugal. Fiquei curioso. E descobri um livro que é uma belíssima história alternativa acidental, uma vez que foi escrito como história de conspirações secretas tendo uma bem construida variação sobre o desenrolar da II guerra como pano de fundo. Mas é essa variação que dá o gosto e a genialidade ao livro, tornando-o essa coisa rara que é uma obra de ficção especulativa de história alternativa portuguesa. Suspeito que não tenha sido escrita com essa intenção, mas garanto que este acaso só veio por bem.
Tinha algumas esperanças que este novo romance seguisse a mesma via entre a especulação histórica e o fantástico. Pelo que vou conhecendo do autor suponho que Corredoura poder-se-ia tornar num Turtledove português (e com um estilo narrativo muito menos entediante do que o deste grande nome do género história alternativa). Mas não, Lusitano Fado segue o caminho do thriller conspiratório, e diga-se que o segue muito bem. O ritmo é rápido e mantém a curiosidade do leitor sempre desperta. Um aviso: quando pegarem neste livro preparem-se para passar uns bons pares de horas com ele. É daqueles que nos obriga a ler sempre mais um bocadinho. A ler o capítulo seguinte mesmo sabendo que a noite vai alta e o dia seguinte vai sofrer alguns bocejos. E depois ler o capítulo a seguir a esse. A teia de mistérios está bem urdida, apesar da prosa do autor não se livrar de uns momentos complicados. Não tão complicados quanto a prosa do David Soares, mas com alguns parágrafos muito gongóricos e momentos dignos de uma Thog's Masterclass. Algo que Portograal tinha em abundância mas aqui se nota menos. Note-se que não estou a comparar o visceral horror gótico de David Soares com o estilo mais burguês de Corredoura, mas ambos partilham do gosto por construções frásicas complexas com palavras muito rebuscadas. Faz parte do estilo pessoal do autor. Às vezes faz tropeçar o ritmo de leitura, mas habituamo-nos.
Em Lusitano Fado seguimos as subtis desventuras de um prototípico político corrupto, com uma imagem pública de paladino da liberdade e democracia mas de facto um homem exímio em aproveitar-se do bem comum para enriquecimento pessoal e dos seus comparsas, que não olha a meios para conseguir o que quer e cuja honra pública disfarça uma venalidade imparável. É difícil não ler nesta personagem uma caricatura que amálgama os traços dos principais políticos portugueses, culpados do que todos sabemos mas não conseguimos provar. Ou, quando o conseguimos, abafado por comissões parlamentares enviesadas ou minuciosos procedimentos técnicos que conseguem, por exemplo, inocentar corruptores porque as gravações de conversas que constituem prova são desconsideradas por erro técnico. Isto não é ficção, é o Portugal contemporâneo, cujas notícias de jornal diárias dão pano para muitos romances do estilo deste.
As histórias e o fio condutor de corrupção e nepotismo que marca a democracia portuguesa já no tempo anterior ao 25 de abril é posto a nu pelas confissões de um fiel ajudante do grande político, caído em desgraça e farto das trafulhices que vão causando cada vez maiores danos ao país. Conta as suas histórias a um professor que também tem os seus problemas com autoridades cinzentistas, com o qual se cruza numa tasca esquecida pelos becos de Alcântara. É esse professor o centro focal do romance. A sua família, a mulher de que se divorciou porque esta representa aqueles que por cá apenas procuram enriquecer e subir na vida sem esforço, quer por via horizontal quer por diagonal, a filha que se procura definir como pessoa, a colega de trabalho que por ele acalenta uma paixão secreta e que se tornará um grande amor e companheira de aventuras. Nisto já em Portograal se percebeu que Corredoura é um romântico literário à moda antiga, temperando com fortes paixões que fazem sorrir pela visão ingénua dos amores os seus enredos de especulação histórica. Há coincidências e ligações ao romance anterior. Nalguns aspectos de fundo Lusitano Fado continua a visão histórica traçada em Portograal, interligando a história familiar dos personagens e reflectindo a muito real influência dos ex-nazis sobre os políticos de direita europeus.
A possibilidade de revelação dos segredos que todos conhecem mas ninguém consegue provar desperta um enredo de acção, com um implacável agente ao serviço do político corrupto a tentar eliminar por todos os meios a ameaça ao status quo, que só é travado pelo sacrifício do melhor amigo do professor que se vê incumbido de escrever um livro que, num toque metaficcional, será um romance de ficção que vai versar sobre as verdades ocultas que todos conhecem mas ninguém consegue provar. Quase diria que Corredoura se revê no seu personagem e no acto deste escrever um romance de conceito similar ao que nos dá a ler.
Mexendo com teorias conspiratórias que caricaturam as muito reais e banalizadas concupiscências daqueles que nos tutelam e transformam a nossa democracia numa triste piada, Lusitano Fado funciona como thriller imparável que nos obriga a manter a leitura em bom ritmo até ao final, mesmo quando chegamos àquele inevitável ponto em que percebemos como irá terminar a história e o seu caminho se tornar claro. Mas confesso que tenho pena que Corredoura não tenha regressado à especulação histórica alternativa de Portograal. É algo que é raro por cá. Há alguns livros e contos sobre a época pombalina e a inexistência da república, que ainda não li, e o retropunk de Lisboa no Ano 2000 ou da ainda infelizmente inédita Winepunk já se afastam demasiado da história alternativa. Corredoura é um autor enciclopédico que conhece bem o que descreve, e seria muito interessante vê-lo aplicar a sua aproximação minuciosa à história contemporânea no imaginar de diferenças nos acontecimentos-chave da evolução histórica que poderiam ter alterado o mundo como o conhecemos. Foi esse o ponto forte de Portograal, algo a que este novo romance se esquiva por se enquadrar noutras categorias literárias. Seria interessante, mas há que recordar que o panorama literário português é pouco clemente com autores que se atrevem a imaginar para lá dos padrões aceitáveis pelo mainstream.