terça-feira, 9 de setembro de 2014

"So Long" Jim


Ross Pynn (1982). "So Long" Jim. Lisboa: Europress.

Sim, maus livros também existem. E são tantos, como os bibliofagos mais experimentados bem sabem. A maioria são indigestos e bocejantes crimes contra a natureza, tristes desperdícios das árvores que foram abatidas para produzir o papel em que foram impressos. Felizmente, hoje, o papel recicla-se. Mas nem todos os maus livros são desperdício. Há literatura que se assume como má, focalizada na repetição formulaica de estruturas narrativas de leitura prazeirosa. Prazeres culposos, é certo, mas mesmo assim prazeres. Sabemos ao que vamos quando abrimos um desses livros. Não esperamos surpresas, apenas algum esforço do escritor em contar uma boa história que entretenha um bom par de horas. E nada mais. E porque não? No cerne de toda a literatura está o acto de partilhar uma boa história. A curiosidade e a capacidade narrativa são o que atrai leitores da Odisseia a Ulisses, das ficções de género mais banais às experiências estéticas hipermodernas.

Roussado Pinto não terá lugar no grande cânone das letras portuguesas, mas foi um prolífico autor de maus livros numa época onde eram publicadas colecções de literatura de bolso a baixo custo. Pulps, à portuguesa, de capas provocantes e conteúdos titilantes a tentar leitores nas bancas de jornais. Algo que com a evolução dos consumos mediáticos desapareceu de todo, mas deixou marcas na história das ficções de género. Os fãs de ficção científica reconhecem a importância da colecção argonauta, apesar das suas más traduções, e o gosto pelo policial foi durante décadas alimentado por inúmeras colecções de livros de bolso que hoje ainda se encontram facilmente em feiras do livro, alfarrabistas ou feira da ladra. Um pormenor interessantes destas edições, que a Argonauta nunca seguiu, foi o terem misturado autores portugueses com os anglo-americanos e francófonos. Se bem que normalmente a escrever sob pseudónimo estrangeirado sonante. Sintomas daquela velha desconfiança lusa sobre o produto cultural nacional e o deslumbre pelo que vem de lá de fora. A ombrear com Spillane e Simenon encontravam-se nomes intrigantes como McShade ou Pynn, pseudónimos de autores especialziados em escrever a metro para estas colecções.

Roussado Pinto ficou imortalizado como Ross Pynn, escritor de policiais hard boiled ou westerns implacáveis. Como as colecções de FC só apostavam nas traduções de qualidade duvidosa de autores americanos e ingleses Pynn nunca escreveu histórias de aventuras no espaço, mas se o fizesse algo de divertido iria surgir. Também meteu a máquina de escrever no horror erótico com as mirabolantes aventuras de Zakarella, cópia mal disfarçada e mais desnuda de Vampirella. São histórias tão más e mirabolantes que têm de ser lidas para se acreditar que alguém as escreveu.

Este carácter transgressor é um dos pormenores curiosos deste género de livros, editados nos tempos opressivos do regime do estado novo e que por serem meros policiais escapavam à censura, que lhes dava pouca ou nenhuma importância. Zakarella já espelha o espírito libertário pós-25 de abril mas o grosso desta literatura descartável que chocava para atrair leitores e os libertar dos seus tostões de Pynn e outros autores similares foi publicada no regime ditatorial. No fundo, forma inócua de escape ao sufoco ideológico e cultural, pequenas transgressões às leituras próprias da moral e bons costumes que deixam sentimentos de culpa e prazer.

"So Long" Jim é um personagem de westerns, um género outrora popular que hoje caiu em esquecimento. Confesso que me recordo de, nos anos 80, me chegarem às mãos pequenos livrinhos de capas provocantes e histórias empolgantes sobre os feitos aventurosos de cowboys no velho oeste. Era mesmo muito novo, note-se. Hoje, com as leituras de género firmemente estabelecidas nos campos do romance, fantasia, ficção científica e policial tenho a sensação que ninguém se lembra do antigo sucesso das cobóiadas literárias. O que até faz sentido, se olharmos para a cultura popular como um todo e recordarmos a perda de importância deste género no cinema após a saturação de filmes dos anos 50 e 60, desde os grandes clássicos de Hawks e Peckinpah à máquina de fazer filmes da Cinnecittá com os seus western spaghetti onde o Colorado e a sierra Nevada ficavam ali para os lados da Andaluzia ou Sicília.

Pegamos num livro destes e pouco esperamos dele, mas Roussado Pinto dá-nos um western tão hard boiled que quase está carbonizado. A história é linear, previsível e cheia de personagens de nula profundidade. Temos o que esperamos. O pistoleiro imbatível aparentemente amoral mas com consciência, terror dos piores facínoras e paixão das mulheres que viviam no duro velho oeste. As mulheres, enquadráveis nas categorias "mulher perdida cheia de vícios", "mulher de vida dificil mas bom coração que sobrevive nos saloons e bordéis" e "mulher de espírito rijo capaz de prender um homem à terra", e sempre descritas como de estonteante beleza. Os bons, pobres homens que se esforçam para obter parcos rendimentos numa terra inclemente, e os maus, homens que não olham a meios para enriquecer à custa dos outros. Homens que matam, que lucram com os vícios, e que detém o poder à força da intimidação.

So Long Jim é um estereótipo do cowboy nómada, hábil com a pistola, cujos valores ocultam uma moralidade firme, que vagueia de terra em terra cruzando-se com aventuras em que se vê obrigado a intervir, com resultados sangrentos. Nesta aventura, primeiro dos dois livros onde surge o personagem, Jim chega a uma cidade sem lei dividida entre dois homens sem escrúpulos. Samuel Benedict é um implacável criador de gado que não olha a meios para expulsar os restantes criadores dos seus ranchos e construir um império latifundiário. Emmett McDermett é o cacique local de uma cidade sem lei, dono de todos os negócios que se alinham na rua principal ladeada de barracões. E sim, amantes das leituras risquè, deliciem-se a entaramelar a língua com este Emmett McDermett, também conhecido como o vilão tttt (e sim, esta expressão aparece várias vezes no livro). O resto é o que se espera. So Long Jim cruza-se com ninfomaníacas, mulheres caídas em desgraça, pacatos rancheiros levados à loucura pela violência dos homens a soldo e acaba por eliminar com elevado prejuízo os vilões, limpando a cidade antes de partir solitário em direcção ao sol nascente. É o pormenor final do livro, que inverte o habitual cowboy ao so poente, que termina com um sorriso este perfeito pastiche.

O que sobressai da leitura é que de facto a aventura está bem escrita, apesar de uma prosa cheia dos piores estereótipos da literatura pulp. Sim, há másculas descrições de cowboys mal cheirosos. Sim, há deliciosos diálogos de violência. Sim, há descrições lúridas onde mulheres atraentes se libertam ao abandono nos másculos braços do herói. Imaginem milhentas cenas dos mais banais filmes do velho oeste passadas ao papel com descrições austeras e conseguem fazer uma boa ideia da narrativa descritiva do livro. Mas a verdade é que a linha narrativa é implacável e o ritmo de encadeamento obriga a uma daquelas leituras de virar compulsivo de página. Lê-se de uma só assentada, e não surpreende que seja assim. Foi escrito com esse propósito. Representa ao mesmo tempo o melhor e o pior da literatura de género. A repetição de temas, as personagens unidimensionais, o baralhar de iconografias banalizadas, assentes numa linha narrativa bem ritmada que conduz o leitor naquilo que é apenas uma boa e divertida história, contada sem pretensões de classicismo literário.