quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014
Gea: Madre di Violenza; La Via del Nero.
Luca Enoch (2000). Gea #04: Madre di Violenza. Milão: Sergio Bonelli Editore S.P.A..
Nestas minhas descobertas do mundo dos fumetti há alguns nomes que se começam a distinguir. Um é o incontornável Tiziano Sclavi, criador de Dylan Dog e de algumas das mais intrigantes aventuras do personagem. Já Antonio Serra distinguiu-se por Greystorm, curta série de steampunk verniano e é nome recorrente nos vários títulos da casa Bonelli, geralmente com argumentos que ultrapassam a mediania do género. Já Luca Enoch despertou-me a atenção com a curiosa série Lilith, que mistura ficção científica com registo histórico numa mescla de viagens temporais e histórias alternativas com um forte toque pacifista. Também se destaca por ser um argumentista-desenhador, algo raro numa produção em série de revistas mensais com cerca de cem páginas. Antes de Lilith Enoch criou este curioso Gea, misturando o fantástico sobrenatural com história de auto-descoberta adolescente. Uma espécie de Harry Potter spaghetti em versão feminina, mas com posicionamentos conceptuais interessantes. E um gatinho preto chamado Cagliostro que funciona como o sistema de alarme que alerta a adolescente para surtos de ameaças ocultas.
Este episódio é particularmente forte numa série que vai além dos pressupostos elementares. A história não gira à volta da personagem principal, o que é um artifício narrativo pouco comum neste género. Só o final trará o enlace dos dois arcos narrativos. Num, Gea aprofunda os seus conhecimentos de ocultismo e num salto místico à Índia descobre um pouco mais sobre o seu papel como guardiã encarregue de proteger o mundo de criaturas sobrenaturais. Destas nem todas são malévolas. Boa parte são meramente inconscientes ou estão deslocadas dos seus habitats naturais e cabe também a Gea protegê-las, enviando-as para uma espécie de limbo paradisíaco onde podem viver seguras. O principal arco sublinha esta visão benévola do papel da heroína. Acompanhamos uma célula de supremacistas brancos que decidem defender a civilização irrompendo por bairros sociais a metralhar tudo o que se mova. Nestes passeios sangrentos deparam-se com mais do que esperavam quando capturam e quase assassinam uma jovem rapariga com asas e fala incompreensível. Um dos racistas empedernidos compadece-se da criança com asas e esconde-a em casa, mas não haverá salvação para estes defensores da supremacia branca. Um polícia de origem árabe dá-lhes caça, mas o castigo virá às garras afiadas da mãe da jovem criatura alada. E nisto tudo resta a Gea assegurar a passagem segura destas duas vítimas para o seu limbo.
Problemáticas como racismo profundo e imigração forçada de populações por guerras ou injustiças sociais são o real foco deste episódio. Reflexões profundas ocultas sob o véu de aventuras sobrenaturais. Visualmente este episódio também se destaca. Enoch mostra-nos a sua mestria com uma prancha inteira que replica na perfeição o momento em que Alex e os seus droogs espancam um sem-abrigo debaixo de uma ponte no seminal A Clockwork Orange de Kubrick. O enquadramento gráfico espelha perfeitamente o ponto de vista da câmara no filme. E este é a mais óbvia das pistas visuais deixadas pelo autor.
Luca Enoch (2001). Gea #05: La Via del Nero. Milão: Sergio Bonelli Editore S.P.A..
Gea é uma série consistente e coerente. A partir das linhas de fantasia adolescente sobrenatural bem traçadas, Enoch vai contando histórias que tocam temas fortes, sendo particularmente sensível à emigração e xenofobia. É muito cuidado na fluidez narrativa e sequenciação de enquadramentos, tornando este o mais regularmente cinemático dos fumettis que vou lendo. Luca Enoch é um nome a descobrir. Quanto ao episódio, Gea vê-se frente a frente com um baluarte renegado. Certo, têm razão, este é o momento de explicar que Gea é um baluarte, ser humano com poderes místicos que defende a humanidade de ameaças sobrenaturais. Apesar de promissora, Gea não é suficientemente forte para travar um renegado que já eliminou baluartes mais fortes. Vai contar com a ajuda de um ser estranho e irreverente para travar a ameaça e defender uma comunidade pacífica de nagas, descendentes dos homens-serpente da mitologia hindu, que o renegado caça para lhes roubar o terceiro olho opalino. Ainda somos mimados com um infodump bem esgalhado sobre o lado negro do universo de Gea, onde Enoch revela que os poderosos demónios que ameaçam a humanidade são afinal uma outra espécie de seres, entre o animal sentiente e o sobrenatural. A busca das trevas tem a ver com o serem alérgicos a alguns comprimentos de onda de radiação emitidas por estrelas de tipo G, o que não vem nada a calhar nas suas tentativas de domínio de um planeta que orbita uma dessas estrelas.