terça-feira, 4 de fevereiro de 2014
Antologia Fénix de Ficção Científica e Fantasia, Volume I
Marcelina Leandro, Álvaro Holstein (ed.) (2013). Antologia Fénix de Ficção Científica e Fantasia, Volume I. Smashwords.
Começa neste volume a história editorial da Antologia Fénix, que se tem distinguido pela regularidade com que nos traz contos do fantástico. O tema inicial é apropriado à iniciativa, com a ideia dos livros perigosos como um simpático indício dos objectivos da antologia. A capa salta à vista, numa luxuriante mistura de art deco com futurismo.
Flip-flip crack-crack: Livros perigosos com apetites por carne humana são o tema do bem humorado conto de Rui Leite que arranca a antologia.
Mutação: a falta de clareza narrativa torna este conto de Regina Catarino pouco compreensível. Parece lidar com amores e apaixonados que se metamorfoseiam em livros.
Livro do Tempo: um conto surpreendente de Carlos Faria, com uma premissa de grande criatividade. Imaginem uma rapariga que detém um livro onde casa frase escrita se concretiza. Simples mas muito eficaz.
A Passagem Secreta: Ah, as influências da ficção genérica de escolas de feitiçaria nos jovens escritores. Se bem que o conto de Sara Farinha tem uma ironia fina na história da jovem pobre aceite numa escola de elites que se tenta integrar cumprindo uma praxe que se revela uma armadilha criada pelo reitor.
Libris in Ténebris: curta vinheta de Diana Sousa que nos leva às agitadas actividades nocturnas dos livros. Que não são nada de extraordinário, apenas não se deixam estar quietos nas estantes.
Portas do Conhecimento: Um toque de ficção lovecraftiana nesta história de busca do conhecimento oculto nos livros mais secretos. Um conto de interessante ambiência por Luís Corujo.
O Tomo de M: Ricardo Dias recupera a ficção pós-apocalíptica com laivos de Um Cântico a Leibowitz. Bárbaros futuristas em busca de glória arrasam uma cidadela dedicada à preservação do conhecimento da era dourada, e levam consigo um livro de sabedoria intemporal: as leis de Murphy.
Escotilha: um conto cujo mundo ficcional é mais ambicioso do que as suas curtas páginas. Carlos Silva coloca-nos na pele de invasores alienígenas que, monitorizando um êxodo forçado dos humanos da Terra, se perguntam o porquê de tanto valor dado àqueles objectos que apenas contêm palavras encerradas entre papel.
Miel Lê: o conto de Jorge Candeias faz pensar no lado especulativo da FC. A história do jovem que graças a um futurista livro interactivo que o mergulha directamente no mundo ficcional espelha muita da especulação e antevisões que se fazem sobre o futuro dos livros. Este conto não estaria nada mal como parte de um conjunto de visões preditivas/especulativas sobre as tendências da colisão entre tecnologia e livros na era digital.
Silverfish, o Último Inquilino: um conto desconexo de Manuel Mendonça, a necessitar de mais algum trabalho e afinamento na temática previsível. O final é incompreensível.
Leituras: O conto de Álvaro Holstein brinca com a nostalgia pela literatura clássica do fantástico num ambiente que recorda o exotismo de E.R. Burroughs. O que eu não consigo perceber é porque é que o autor insiste em rematar os seus contos com uma aplicação de plot twist que parece saída de uma composição de um aluno de 5.º ano de escolaridade.
Felicidade: As distopias da perfeição utópica são sublinhadas neste conto intimista de Jorge Palinhos, onde o direito à tristeza é estranhado num mundo onde ser feliz é uma obrigação.
Leitura entre Lençóis: João Rogaciano cria uma divertida inversão da iconografia do vampiro, colocando uma jovem criatura da noite a assustar-se com relatos de humanos prontos a cravarem de estacas incautos vampiros adormecidos, lido no remanso do caixão tal como uma criança lê livros oculta debaixo dos lençóis nas noites silenciosas.
Manuais Escolares: outro conto que se resume a um montar de cena pensado de acordo com um plot twist muito batido. Uma jovem demónio é castigada com uma leitura insuportável no conto de Raquel da Cal.
Mundos em Mundos: uma vinheta encantadora de Vítor Frazão, pequeno hino às eternas discussões entre fãs da literatura de género ironizadas num divertido diálogo entre os corvos que trazem a voz do conhecimento a Odin.
Livros que não deviam ter sido escritos - XIV: o conto de José Morais homenageia com muito interesse o estilo bibliográfico de Borges e outros escritores que optam por contar uma história fantástica não como narrativa de aventura mas como árido relato de análise historiográfica.
O Iluminarista: Conto de Carlos Espargueiro que poderia ser mais trabalhado. É pouco claro, apesar de ter algumas passagens de forte poesia.
Uma Demanda Literária: O ponto forte do conto de Joel Puga é a solidez do espaço ficcional, notável por ter sido conseguida em tão poucas páginas. Isso, e o conceito encantador de um comerciante de livros que pode aparecer onde menos se espera.
De Pequenino, Conflitos Livrescos, O Leilão: João Ventura é um mestre do micro-conto do fantástico, capaz de em poucas linhas criar pequenas e interessantes histórias com uma forte ironia.
O Poder da Leitura: este conto de Ana Luz não se compreende. É uma história muito difusa sobre o desaparecimento de um rapaz e é rematado com uma referência a um livro que cai em cima do leitor do conto sem sobre-aviso ou justificação.
O Rosto Vivo: há que elogiar o humor autocrítico de Marcelina Leandro, ao colocar num dos personagens do seu conto que os livros de contos são os piores. Manobra arriscada mas divertida de um membro da equipe editorial desta antologia de contos, que também é um elogio nostálgico ao gosto pela leitura.
Pulsação: como se sente um livro, criado, aprisionado nos escaparates das livrarias, aberto pelo leitor, aprisionado nas estantes? Este conto de Inês Montenegro recorda-nos que dentro de um livro residem ideias que ganharam vida fora da mente do autor.
Procura-se homem para satisfazer dona de casa: sátira de Ana Ferreira à pornografia literária de má qualidade que encanta leitoras pelo mundo fora.
A Dança das Letras: o sentimento romântico da leitura, que os apaixonados pelas letras sentem; a fuga da realidade e mergulho nos mundos de ideias trazidos pelas palavras que nos deixam, por deliciosos momentos, alheados da realidade concreta. Quem tem paixão pela leitura compreende bem o cerce deste conto encantador de Ana Nunes.
O nível qualitativo dos contos curtos contidos nesta primeira antologia é elevado, apesar de alguns menos conseguidos ou com muitas arestas a limar. Os contos de alta qualidade são particularmente notáveis porque a Antologia Fénix assume-se como repositório de contos curtos (e, nalguns casos, curtíssimos) e é muito difícil desenvolver um bom espaço ficcional e elegância literária em formas tão sintéticas. A vontade de trazer regularmente novas ficções do fantástico com uma dose de humor é algo que está a ser cumprido, tendo-se ficado por mais do que pela promessa. Um bom arranque para esta antologia, que pode ser lida e descarregada no Smashwords.