sábado, 14 de janeiro de 2012

O espírito, a máquina, o espírito da máquina.

Duas intrigantes experiências culturais, por acaso apanhadas no mesmo dia, que obrigam a reflectir sobre a natureza da criatividade estética e, no fundo, sobre algo que consideramos parte do significado de ser humano.


Nova Yorque, pintada pelo programa ThePainterFool.

Na New Scientist desta semana, Catherine Lange mostra um artigo de alguma profundidade sobre obras de arte geradas por computador. Não obras criadas no computador, ou criadas utilizando software generativo. Obras criadas por programas cujos algoritmos que procuram mimetizar o instinto artístico e criar sem intervenção humana. É ainda algo rudimentar, mas já é possível, e esta incipiência chega já para colocar em causa aquilo que pensamos sobre criatividade: é algo único ao ser humano, espelhado em rasgos de brilhantismo e momentos de intuição quase mística, ou é apenas um processo cerebral, replicável por algoritmos digitais avançados? A autora mostra-nos as obras criadas pelo programa The Painting Fool, criado para explorar os processos e não os resultados da composição pictórica, e cujos trabalhos... já vi melhor, mas também já vi bem pior. Francamente, se não nos disserem que são criados por um computador não notaríamos a diferença de uma obra criada por um humano. Misturem-se neurocientistas, que desapaixonamente apontam para a criatividade como um processo cerebral que ocorre mesmo que não o estejamos conscientemente a utilizar, e a crença em algo que pensamos ser único ao ser humano leva um abalo. Ou talvez não, se aceitarmos que somos intricados mecanismos biológicos cuja química conduziu à racionalidade, ao sonho, à imaginação, e não uma espécie de supra-sumo super-natural. Poderá um computador mostrar criatividade? Já o começa a fazer, de forma elementar, recriando, mimetizando, reconstruindo. Qual será o limite? Qual será o resultado de uma possível estética digital criada por algoritmos capazes de definirem o que é uma estética própria?


Cavalos, grutas de Chauvet.

Em perfeito contraste, uma viagem no tempo, até há trinta e cinco mil anos atrás. O documentário Cave of Forgotten Dreams - genial, leva-nos ao interior das grutas de Chauvet e mostra, detalhadamente, as espantosas e apaixonantes pinturas rupestres preservadas nas profundezas da terra. O realizador, Werner Herzog, tirou partido do 3D estereoscópico para criar uma ilusão de palpabilidade, permitindo sentir não só a beleza do traço mas a volumetria dos espaços, algo de essencial para compreender a arte rupestre. Deste filme saem algumas ideias intrigantes. Ao olhar para um desenho com trinta e cinco mil anos que representa uma mulher e um bisonte, somos esmagados pelo peso de uma tradição cultural que antecede largamente os minotauros de Picasso, a tradição da tourada ou os mitos do rapto de Europa. Sentimos que certas ideias são permanentes na mente humana, ganhando novas formas e novas palavras que as descrevem ao longo do tempo, permanecendo intocadas no seu âmago. Uma impressão que é reforçada quando o realizador nos mostra que a idealização do corpo da mulher tem uma linha contínua das Vénus pré-históricas às super-modelos contemporâneas ou que uma flauta pré-histórica é tocada numa escala pentatónica, soando de forma muito similar ao que hoje estamos habituados a ouvir. Um homem primitivo olharia para as nossas mulheres ideiais, objectos de desejo, como trinca-espinhas inférteis, tal como vemos as vénus pré-históricas como obesas. No entanto, as ideias de sexualidade, fertilidade e o profundo mistério da vida mantém-se.

É avassalador sentir que mesmo nesta época saturada de imagens a simplicidade e mestria de artistas que nas paredes de pedra representavam um mundo de que o homem contemporâneo está completamente arredado toca, profundamente, o espectador. As imagens de cavalos, auroques, touros, leões e ursos com trinta e cinco mil anos ressoam dentro da mente do homem de hoje que as contempla.

Hoje conseguimos criar entidades artificiais que mostram sinais de criatividade autónoma. Mas o espírito da sensibilidade estética, alicerçada por ideias que sobreviveram ao passar dos milénios, nasceu sob o tremelicar das chamas de tochas nas profundezas das cavernas.

"It's our nature to represent, we're the animal that represents, the sole and only maker of maps", observa William Gibson em No Maps For These Territories. É o inelutável percurso do ser: "We've always been on our way to this new place, that is no place, really, but is real... Percorremo-lo mesmo quando começamos a insuflar os primeiros sopros de algo que se assemelha à vida mental, inteligência e criatividade às nossas máquinas. Há uma linha directa entre as mãos marcadas a ocre na pedra rugosa das cavernas milenares e os robots e software autónomos contemporâneos. Procurar ir mais longe, sempre.