segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Lémures

A ler O Mundo em 2011, edição anual da The Economist, é difícil não ficar deprimido. As perspectivas para o ano que se avizinha não são das melhores, em particular para países como o nosso, sobre-endividados e por isso à mercê da rapacidade dos investidores da alta finança internacional. Será que faríamos melhor se nos juntássemos todos em peregrinação ao cabo da Roca e resolvêssemos o problema português de forma definitiva saltando como lémures dos penhascos sobre o atlântico?

Por tentador que nos pareça, há que pensar que neste momento a conjuntura complicada e o nosso tradicional fatalismo se estão a conjugar para gerar um falso sentimento catastrofista. Não é que as coisas estejam bem neste país à beira-mar. Longe disso. As finanças públicas estão dominadas pelas necessidades dos mercados, a classe política continua a comportar-se como se portugal fosse uma república das bananas, boa parte dos sectores da economia estão em contracção, o desemprego sobe e o fosso social entre as camadas mais ricas e as mais pobres da população é vergonhosamente abismal. E tudo se prevê que venha a piorar.

Por outro lado, há que reparar na espantosa evolução que este país viveu nas últimas décadas. Depois de muitos anos debaixo do jugo de uma ditadura retrógrada, portugal explodiu. Nas últimas décadas, passámos de um país ruralizado, com elevadíssimas taxas de analfabetismo, uma educação global que se ficava pela memorização de datas e factos, com uma interioridade quase inacessível e pouca indústria para um país modernizado e urbanizado, que evoluiu enormemente na educação, economia e acessibilidades. Os resultados estão à vista. A Lisboa provinciana onde cresci, rodeada de bairros de lata, é agora uma metrópole ao nível europeu. A qualidade do nível educacional subiu, bem como o número de portugueses com educação de nível superior. Portugal já dá cartas na investigação científica, coisa impensável há poucos anos. Algumas das mais dinâmicas e conceituadas empresas de tecnologia de ponta ao nível mundial são portuguesas. O país que há vinte ou trinta anos se esforçava por atrair investidores estrangeiros é hoje um país de investidores no estrangeiro. Somos líderes tecnológicos em indústrias de ponta. As cidades do interior desenvolveram-se, deixando de ser sinónimo daquela imagem rústica que tanto prezamos. E por muito que se critique o investimento no asfalto, é bem conveniente demorar menos de meio dia a atravessar o país de norte a sul.

Portanto, não somos uns coitadinhos. Não somos um país subdesenvolvido. Não quero com isto dizer que estamos muito bem, que pouco resta a fazer. Ainda é preciso mudar muita coisa, estruturalmente, e em particular no campo das atitudes. Séculos de domínio da inquisição (que teve a virtude de "exportar" à força algumas das classes mais abastadas e progressistas para fora de portugal, com grande benefício dos países que os acolheram) seguidos da mediocridade do estado novo arreigaram nos portugueses um fatalismo alicerçado na ideia da pequenez nacional, no agarrar das tradições, num respeito desmesurado por aqueles que têm posição social e por uma profunda consciência de mediocridade. O zé povinho hoje toma banho, veste-se com roupas de qualidade, conduz um carro e vive numa casa apetrechada com os brinquedos tecnológicos contemporâneos, mas ainda pensa como se vivesse nos tempos das carroças.

Mudar atitudes, e intervir. Intervir no nosso dia a dia, dando o nosso melhor nos campos em que trabalhamos. Intervir socialmente, batendo o pé a uma classe política incompetente e caciquista, que por detrás de uma retórica de desenvolvimento vive de nepotismo e corrupção bizantina. Abrir guerra a uma certa classe empresarial que se atribui bónus milionários enquanto se queixa que o possível aumento do salário mínimo representa um esforço incomportável e exige a ajuda do estado sempre que as suas divagações financeiras correm mal. Em suma, não baixar os braços. Não encostar a um canto a dedilhar guitarra e a cantar o fado dos desesperados.

(Este post foi inspirado pelas recentes palavras de António Barreto no telejornal da 2:, e pelo artigo de Nicolau Santos publicado na edição O Mundo em 2011.)