segunda-feira, 17 de setembro de 2007

A Mãe



Maxim Gorki, A Mãe, Edições Ráduga, 1987

Maxim Gorky
Wikipedia | Maxim Gorky

Há sonhos que se recusam a morrer. Felizmente. O sonho da igualdade, da justiça, do construir uma sociedade mais justa para todos é um desses sonhos. Um sonho com muitas facetas, uma ideia de um mundo que se recusa a desaparecer, apesar de todos os ódios que despontam, de ter sido apropriada por regimes e religiões. É uma ideia prevalente, um padrão comum a todas as ideologias, religiões e sonhos de futuro desta humanidade fragmentada e indecisa.

Em A Mãe, Maxim Gorki escreve uma poética elegia aqueles que ultrapassam os seus limites, os seres anónios mas de grande coragem que não cruzam os braços e se dedicam a lutar contra as injustiças da ordem instuída. Gorki, socialista convicto na Rússia czarista, escreve com a profunda consciência social de alguém que sente as injustiças à sua volta e acredita numa ideologia capaz de mudar o mundo. Nesta obra, a literatura está perigosamente entretecida com a propaganda política, e tal é intencional. A prosa talentosa de Gorki e um certo sentido de puro messianismo salvam esta obra do esquecimento por entre as pilhas de livros destinados à propaganda pura.

É de notar que Gorki escreveu com um profundo sentido político, escreveu para propagandear a sua ideologia, mas fê-lo antes da ideologia se ter tornado regime político, regime que comprovou, mais uma vez, o velho adágio da corrupção do poder, e que se tornou tão desumano e mais sangrento do que o anterior regime. Gorki escreveu as suas mais influentes obras antes de 1917 - A Mãe foi escrita em 1904, curiosamente nos EUA, onde Gorki se havia deslocado em busca de apoios e dinheiro para a revolução que fervia em surdina na Rússia czarista. Se A Mãe datasse dos anos 30 ou 40, certamente que se saberia ser o perfeito produto de propaganda, ideia devidamente definida pelos parâmetros da pureza ideológica e atentamente observada pelo olhar vigilante do comissário político. Tantas outras foram escritas foram escritas assim, nos tempos soviéticos, que após encorajarem a liberdade artística depressa a encurralaram no espartilho do realismo socialista, convencendo os artistas a aderir utilizando, literalmente, a ponta da baioneta. Se após 1917 a vanguarda russa explodiu num fervilhar ainda hoje influente - atente-se à estética do construtivismo, assim que os sovietes consolidaram o poder, e muito em especial nos tempos estalinistas, o espartilho foi aplicado, e toda a arte tinha de se conformar a apregoar as glórias do proletariado, a injustiça do capital e as gloriosas conquistas do socialismo de sabor imperial da nova Rússia vermelha.

Como o mais influente dos escritores socialistas pré-soviéticos, Gorki acabou por se tornar o marco a partir do qual o realismo socialista se torneou, e A Mãe a obra-mestra, o modelo a partir da qual os bons escritores, conscientes da sua consciência social (e também conscientes das câmaras de tortura, dos gulags e dos pelotões de fuzilamento). Mas não se entenda Gorki como um conivente colaborador com os horrores do regime soviético. O que salvou Gorki do destino de tantos outros artistas, escritores e intelectuais aniquilados nas purgas políticas foi o seu estatuto como ideólogo messiânico do socialismo. Pessoalmente, creio que deve ter sido amargo para um homem como Gorki assistir ao transformar de um sonho no pior dos pesadelos.

A pureza do sonho pervade A Mãe. A estória da Mãe, mulher que sofreu a brutalidade da vida sem esperança do trabalho sem sentido, que renasce a partir do idealismo puro do filho, e que se torna, assim, uma mãe para toda uma célula activistas, é uma história universal que ultrapassa ideologias. Gorki atribui um carácter messiânico, uma luta de mártires, à luta pela revolução. O paralelo com o cristianismo puro é óbvio, e Gorki vai aludindo ao cristianismo, ao sublinhar a devoção da Mãe por Jesus, mostrando um parelelismo idealista com os ideais puros da cristandade com os ideais do socialismo puro.

O regime caiu, o socialismo no cano da espingarda ficou relegado para o arquivo de erros sangrentos da história. Mas seria uma pena que o ideal, o ideal de um mundo mais justo, o ideal da justa recompensa para quem trabalha, se desvanecesse, confundido com as injustiças de um regime erguido em nome do ideal mas que depressa o subverteu debaixo de mais uma tirania. Talvez por isto, talvez pelos tempos em que ainda vivemos, em que os ideais de justiça social parecem cada vez mais longínquos, A Mãe ainda é uma obra pertinente, que nos recorda, talvez com um excessivo fervor, do valor da coragem e da nobreza da luta pela justiça.