sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Sim, Não, talvez... porquê?

Confesso que este é o post que ando a adiar. O assunto é divisivo, e moralismos político-sociais são coisa que em regra geral pouco ou nenhum interesse me despertam. Não é apatia, é um simples just don't care. Fiquem lá com os vossos interesses que eu fico-me com os meus. Mas a este assunto não me posso esquivar, especialmente porque as alarvidades que por aí se dizem são tão grandes que fico estonteado com a enormidade da ignorância e da sobranceira. Enfim, não consigo fugir a pronunciar-me sobre o referendo de domingo. Não que considere que as minha palavras sejam assim tão importantes, especialmente sobre assuntos sobre os quais tantas luminárias se pronunciaram, mas enfim, qual é a piada de ter um blog se não se expressar uma opiniãozita de quando em vez...?

Geralmente, quando se fala de aborto, a virulência dos comentários é tanta que faz recordar um ataque nuclear de larga escala com centenas de icbms carregados com ogivas múltiplas. A coisa costuma assumir proporções cataclísmicas. Homens e mulheres moderados de ponderadas palavras rasgam-se em vitupérios quando falam do assunto, especialmente quando falam do que outros pensam sobre o assunto. Mas que se dane. Venham daí os misseis. É angustiante, porque gosto pouco de chatices, e tenho pouca paciência para discussões - vício que me vem da minha cada vez mais nula paciência para os meus compadres humanos.

O primeiro ponto que tenho de deixar claro é que não consigo, em sã mente e consciência, compreender os benefícios do aborto. Não consigo compreender a ideia de aborto como algo de progressista. Na nossa era, em que a ciência desempenha um papel tão importante, a ideia de vida é mais preciosa do que nunca, precisamente porque as ferramentas da ciência nos permitem compreender a vida. Lutamos pela preservação de espécies, fascinamo-nos com as descobertas sobre a vida microbiana dos extremófilos, esterelizamos as sondas espaciais para que micróbios terrestres não contaminem os hipotéticos ecossistemas marcianos. Perante isto, defender a ideia de que aniquilar uma vida humana no seu princípio, chegando ao ponto de discutir precisamente o que é isso de vida humana, como uma ideia progressista, é algo que me ultrapassa. Especialmente quando a nossa compreensão da reprodução humana nos permite acesso a meios de contracepção eficazes, e quando a nossa evolução social deveria permitir o acesso à educação sexual e ao planeamento familiar. Com meios mais eficazes e evoluídos de controlar a reprodução, a aniquilação de fetos através do aborto parece-me um método primitivo, ineficaz e éticamente errado. Imaginem que alguém sugeria que uma boa forma de acabar com o desemprego era começar a matar desempregados. Ideia ridícula, não é...?

Infelizmente, é uma constante humana, esta preferência pelo ineficaz em detrimento do eficaz - mas que dá trabalho. Parece-nos sempre muito mais fácil remediar do que prevenir.

As eternas discussões sobre se o feto vive ou não parecem-me absurdas. Um micróbio, um vírus, podem não nascer, crescer, ir à escola, escrever um livro, ter um filho e plantar uma àrvore, mas não deixam de ser considerados seres vivos. No entanto reconheço que esta linha de raciocínio pode levar à ideia da vida sagrada, glosada tão brilhantemente pelos Monty Python no filme O Sentido da Vida, com a surreal coreografia ao som da canção Every Sperm is Sacred..., e lá se abre espaço aos que defendem que a santidade da vida não deve ser impedida por contracepções ou esse pernicioso envenenamento da mente da juventude que é a educação sexual. E a ideia de santidade e preciosidade da vida humana é sublinhada sempre que alguém se faz explodir em nome de ideais religiosos, ou sempre que alguém é morto em disputas mesquinhas ou guerras idiotas.

Posto isto, está na hora de encarar a realidade: o aborto existe. É uma das tristes realidades contemporâneas, como o consumo de drogas, a pobreza ou a poluição. A questão, a questão real, que ultrapassa as considerações teóricas, os argumentos elegantes e os idealismos bem intencionados, é saber se somos capazes, como sociedade, de enfrentar o problema do aborto, ou se preferimos enterrar a cabeça na areia, protegidos por moralismos bacocos e leis repressivas. Até agora, tem sido isso precisamente o que tem acontecido. Ficam os moralistas todos contentes, no genuflectório e no café, porque essa coisa do aborto não existe. Sabe-se que existe noutros países malvados, até mesmo em Espanha, mas daí nem bom vento. E até se sabe que existe nos vãos das nossas escadas, mas disso nem se fala. Os defensores do não fazem-me sempre recordar aqueles que têm as casinhas sempre limpinhas, brilhantes e bonitinhas... com o lixo todo escondido debaixo dos tapetes e atrás dos móveis. Mas o estar escondido não interessa, o que interessa é que não está à vista...

Mesmo quem não concorda com o aborto tem de concordar que esta situação é insustentável. A lei actual, que pune o aborto excepto nas mais estritas condições, é perfeitamente ineficaz. Tem como único resultado que os afluentes vão abortar do lado de lá da fronteira, e os que não têm dinheiro sujeitam-se aos horrores do vão de escada. Os, perdão, as, que nisto quem é sacrificado é a mulher. Não é a existência da lei que impede o aborto, apenas o varre para debaixo do tapete, com consequências gravíssimas e inaceitáveis.

Posso não concordar com o aborto, mas recuso-me a castigar quem o pratica. Porque a decisão de abortar não é de certeza uma decisão fácil, e será algo que para sempre irá pesar na consciência de quem a tomou. Mas o erro, o crime, não está em quem tomou essa decisão, está numa sociedade que em nome do vírus da religião e da convenção do que é ou não aceitável interfere em algo tão natural como a vida sexual. A culpa não está na mulher, está numa sociedade que aceita mal o planeamento familiar, que há vinte anos remete a educação sexual nas escolas para o quadro das eternas boas intenções, que considera a utilização de contraceptivos como algo de contra natura. Mas é sempre muito mais fácil aos defensores da moral e dos bons costumes atacarem as vítimas das suas hipocrisias do que encarar a realidade.

Talvez esta moralidade seja consequência do entranhar da igreja no tecido social português, talvez não. Contra as opiniões da igreja nada tenho - o que me chocaria seria se os representantes da igreja tivessem uma posição contrária à de sempre. As realidades não fazem parte do domínio teológico.

Por isso, no próximo domingo, mesmo detestando a ideia de aborto, vou votar sim. Porque considero que a vida é preciosa, porque recuso hipocrisias moralistas e bons costumes alicerçados na ostracização. Porque o remediar é tão menos eficaz do que o prevenir...

Como nota final, não consigo deixar de reparar na importância deste debate. Apesar das minhas opiniões, apesar de tudo o que tem sido dito e escrito, não consigo acreditar que a despenalização do aborto seja um assunto assim tão importante que mereça um referendo. Escrevo isto sem querer desconsiderar que o problema do aborto - especialmente o que se prende com o aborto clandestino - não seja um problema grave. Mas será o problema mais grave do país? Vivemos sob a égide de um governo que goza de maioria absoluta no parlamento, e que legisla a seu bel-prazer. Neste assunto, em que poderia utilizar os seus poderes para corrigir a legislação existente, remete biblicamente a decisão para as mãos do povo, enquanto que em outros problemas graves que afectam o país legisla à sua vontade, sem olhar às mãos do povo. Enquanto discutimos a despenelização do aborto, vamos assistinodo à aniquilação dos serviços públicos, à virtual extinção da segurança social, à racionalização do sistema de saúde em nome de critérios economicistas e ignorando as necessidades das populações, ao esmagar do sistema educativo público. Usando a maioria, e usando o mandato político que lhe é democraticamente concedido para tomar decisões em prol de todos nós, o governo vai decretando reformas que todos os economistas garantem que são o melhor para todos, mas não nos é perguntado se queremos ser sumáriamente reformados. Atrevo-me a afirmar que o simples facto de ter sido referendado sublinha o desprezo institucional por esta questão - atira-se um osso ao povo, deixá-lo decidir, e da sua decisão lava-se as mãos.

Pronto, custou, mas foi. Agora carreguem lá no botão vermelho. Venham de lá essas explosivas ogivas.