sexta-feira, 6 de outubro de 2006

Os Filhos de Anansi



Neil Gaiman, Os Filhos de Anansi, Presença, 2006

Editorial Presença | Os Filhos de Anansi
Anansi Boys
Using genre to effect - Neil Gaiman

Anansi é um daqueles deuses muito curiosos. Um deus dos panteões animistas da áfrica ocidental, Anansi é o deus-aranha, e fiel à sua natureza, tece. As suas teias são as histórias que formam o tecido da realidade, o tecido dos sonhos. Anansi é um daqueles deuses voláteis em quem não se pode confiar. Volúvel, Anansi toca-nos e o seu toque pode ser benéfico ou prejudicial. Muitas vezes assistimos às histórias de Anansi e ficamos com a sensação de que ele está apenas a brincar conosco, manipulando-nos a seu bel-prazer sem qualquer outra intenção do que o mais puro divertimento. Como diz Neil Gaiman, há muitas histórias sobre Anansi. Nalgumas, Anansi vence, noutras nem por isso. Mas todas as histórias no fim acabam por ser histórias de Anansi.

Charles Nancy é um expatriado americano a viver uma vida que não se pode dizer perfeita debaixo dos céus cinzentos da Inglaterra. Não é que a sua vida seja má, simplesmente não é tão boa como poderia ser. Charles espera casar-se em breve com a namorada, Rosie, uma namorada muito insistente na pureza virginal pré-marital e dona de uma simpática mãe que simpáticamente odeia Charles. Charles trabalha para uma agência de representação de artisas cujo dono é perito em artimanhas que desviam os dinheiros dos artistas para um abrigo seguro nas suas contas bancárias em paraísos offshore. E Charles tenta não pensar muito na sua infância traumatizante, passada na Florida com um pai que passava a vida a humilhá-lo com partidas incoerentes. De facto, Charles tenta pensar o menos possível no seu pai, um homem extrovertido e jocoso que na perspectiva do filho fez da sua vida uma imensa palhaçada.

A notícia da morte do seu pai vai abalar o pequeno e calmo mundo de Charles Nancy de uma forma só compreensível metafóricamente por abalos provocados pela mistura de um terremoto de nove pontos na escala de Richter combinado com furacões e chuvas de meteoros. Sei que tenho o hábito de desvendar os livros que leio, mas desta vez vou fazer um esforço. Vou apenas deixar no ar que a hipotética morte do pai de Charles Nancy traz à sua vida o irmão, um irmão mais do que biológico que herdara os poderes do pai, uma encarnação do deus Anansi. Após o encontro entre Charles e o irmão segue-se o caos. A vida de Charlie dá voltas inusitadas, e tudo o que parece revela ser o seu preciso oposto. Sem grandes explicações sobre o seu destino, Charles tenta definir-se num mundo de bruxas suburbanas, patrões desonestos, fantasmas vingativos e atraentes mulheres-polícia que seguem impulsos justiceiros. E mais não digo. Leiam o livro, porque, acreditem, vale mesmo a pena.

Neste livro Neil Gaiman revisita o seu clássico tema de jornada de descoberta, elemento recorrente da sua ficção, com uma história que nos leva a reflectir nas maravilhosas imperfeições da incongruência que é a família - pessoas unidas por laços biológicos e afectivos que passam grande parte do tempo a odiarem-se e o tempo restante com saudades uns dos outros. As famílias perfeitas são ilusões, como todos nós bem sabemos. Comprazemo-nos a infernizar a vida dos que nos são mais próximos precisamente porque gostamos deles.

Neil Gaiman dispensa apresentações. O seu largo currículo literário abrange os comics e a literatura de terror-fantasia, onde se tem distinguido pelas suas obras imaginativas escritas com uma mestria invejável. Os Filhos de Anansi são um pouco um desvio à norma de Gaiman. Neste livro, Gaiman pega nos seus habituais elementos do fantástico e trata-os sob a perspectiva do humor - não o humor brejeiro da piadinha fácil e asneirosa que tanto anda na moda, nem o humor insondável e leve do simplesmente engraçado. Os Filhos de Anansi são uma obra divertida, onde o humor descarrila em grande estilo, alicerçado pela prosa elegante e coerente de Gaiman. Os Filhos de Anansi é um livro comédia, mas não é comparável a uma daquelas comédias que nos fazem sorrir... antes, é comparável àquelas comédias tresloucadas que nos fazem doer a barriga de tanto gargalhar. Pode parecer que estou a exagerar, mas... leiam, é um imperativo, leiam.

Por divertido que pareça, Os Filhos de Anansi esconde uma férra estrutura literária que nos permite seguir várias pequenas histórias ao mesmo tempo, que convergem no grande arco das aventuras e desventuras de Charles Nancy. A prosa de Gaiman está no seu melhor, elegante como sempre e capaz de nos envolver profundamente nas histórias que conta. Tão profundamente que o livro quase de lê de uma só assentada, que nos obriga a uma nova leitura - os textos de Gaiman são pura gula literária, apetece sempre ler mais e mais, mas estão concebidos serem calmamente saboreados. Os Filhos de Anansi é um livro simplesmente delicioso.