sábado, 11 de março de 2006

Civismo

Das múltiplas tarefas e facetas que tenho que assumir enquanto professor, uma das que menos gosto é a de professor de formação cívica. Ao escrever isto, torno-me um alvo para as boas almas que pululam no nosso sistema de ensino, que com grande bonomia me irão frisar como hoje é importante que a escola, antes de ensinar, eduque, sendo a formação cívica um espaço fulcral para que isso aconteça. O argumento parece ser baseado na ideia de que já que os pais não educam, terá de ser a escola a fazer esse trabalho, embora haja motivações mais fortes para a imposição da formação cívica como parte do currículo dos alunos. Tenho a certeza que por aí há óptimos professores, disponíveis para abordarem os temas bicudos que a formação cívica permite, prontos a valorizar a mente dos infantes com belas frases e argumentos que vão ao encontro de todas as ideias bonitas da sociedade. Agora, eu não sou um deles. Que me desculpem, mas para mim as aulas de formação cívica são uma tortura. Para perceberem como eu me sinto, imaginem uma situação inversa, embora semelhante: e se em vez de ideias políticamente correctas, como a formação cívica, os grandes senhores do pensamento que se acotovelam nos gabinetes da cinco de outubro houvessem, do alto da sua magna sabedoria, decidido que a contribuição decisiva para a formação dos petizes que frequentam as escolas estava na educação pela arte, criando assim uma àrea curricular não disciplinar com um título pomposo de... formação criativa, talvez? Assegurada pelo director de turma, independentemente da sua formação, e pensada de modo a abordar a criatividade de uma perspectiva prática de expressão pela arte?

(Estão a ver como é fácil imitar a algaraviada que emana dos píncaros rarefeitos do ministério?)

Imaginem a quantidade de docentes de matemática, história, língua portuguesa e afins que declarariam a perfeita tortura que seria dar essa aula?

Para conseguir assegurar a aula de fc, como lhe chamo, algures entre a ficção científica e a fixação cognitiva, opto por trabalhos de pesquisa. Dou alguns temas a escolher aos alunos, e deixo-os pesquisar, elaborar cartazes e no final apresentar aos colegas aquilo que descobriram sobre o assunto. Assim, numa destas aulas, saí do lugar do professor e sentei-me ao fundo da sala, libertando o espaço clássico da aula para um grupo de alunos que ia apresentar um trabalho sobre a criminalidade.

Os alunos falaram bastante da importância que o grupo de amigos e que a família têm para prevenir os comportamentos desviantes nos jovens. Falaram, e muito bem, muito melhor do que eu esperaria de alunos de um quinto ano. No final, uma das alunas do grupo ainda pede para falar.
- Há que ver uma coisa. Os pais é preciso terem tempo para os filhos. É que pronto, eles trabalham e chegam tarde, aí por volta das sete, e os pais fazem viagens, e ficam fora de casa, mas... olhem, a minha mãe é ama. E os meninos de quem ela toma conta gostam mais dela do que das próprias mães. Os meninos já chamam mãe à minha mãe. E pronto, isto não é... - as palavras faltaram-lhe, mas a sua expressão preocupada com as profundas injustiças da nossa sociedade dizam tudo aquilo que as palavras não permitiam.

Perceberam o recado? Pedi aos meus alunos que lutassem para construir um mundo mais justo.

(um comentário óbvio será afinal a formação cívica sempre serve para alguma coisa.)