terça-feira, 23 de agosto de 2005

Chocolates Quentes


Charlie

Website Oficial de Roald Dahl
Books and Writers | Roadl Dahl
Wikipedia | Roald Dahl
IMDB | Charlie and the Chocolate Factory

A literatura infantil parece dividir-se em dois grandes campos: um lírico e fantasista, vivendo da conjugação entre a ilustração e a beleza do texto, e outro de pretensões mais literárias, com obras mais elaboradas que trazem dentro de si as sementes de um inconformismo irremediável. Olhem com alguma atenção para as prateleiras de literatura infantil de qualquer livraria (coisa rara, eu sei, uma livraria). Lá encontrarão os volumes profusamente ilustrados que pertencem ao primeiro campo, lado a lado com os mais volumosos tomos do segundo campo, representado na sua perfeição pela série Harry Potter ou o muito português Uma Aventura.... Chamo-lhes conformista, porque, enfim, leiam e reflictam um pouco: feiticeiros que se concentram nos seus rendimentos académicos, bons alunos sempre dispostos a combater o mal e sem que sequer lhes passe pela cabeça o mais ténue questionar da sociedade em que vivem, grupos de jovens urbanos pré-adolescentes perfeitamente integrados que vivem as suas pequenas aventuras, ou a variação tolkien do romance juvenil, as infindas histórias de jovens e suas aventuras em reinos fantásticos de fadas e dragões.

Temos isso, e também temos os livros de Roald Dahl. Para perceberem bem como era a prosa de Dahl, leiam atentamente esta citação (que sem dúvida agradará aos docentes entre vós):

"It’s a funny thing about mothers and fathers. Even when their own child is the most disgusting little blister you could ever imagine, they still think he or she is wonderful. Some parents go further.They become so blinded by adoration they manage to convince themselves their child has qualities of genius. Well, there’s nothing very wrong with all this. It’s the way of the world. It’s only when the parents begin telling us about the brilliance of their own revolting offspring, that we start shouting, “Bring us a basin! We’re going to be sick!”

School teachers suffer a good deal from having to listen to this sort of twaddle from proud parents, but they usually get their own back when the time comes to write their end-of-term reports. If I were a teacher, I would cook up some real scorchers for the children of doting parents. “Your son Maximilian,” I would write, “is a total wash-out. I hope you have a family business you can push him into when he leaves school because he sure as heck won’t get a job anywhere else.” Or, if I were feeling lyrical that day, I might write, “It is a curious truth that grasshoppers have their hearing organs in the sides of their abdomen. Your daughter Vanessa, judging by what she’s learnt this term, has no hearing organs at all."


Confessem lá, quantos professores não sonharam já dizer palavras destas aos papás babosos de alguns dos verdadeiros abortos intelectuais que temos como alunos?

Dahl foi uma figura idiossincrática. Inglês de ascendência norueguesa (Dahl não é própriamente o mais british dos nomes), grande fanático de doçes e outras substâncias aditivas profundamente saborosas e açucaradas capazes de cariar o mais resistente dos dentes, escreveu uma vasta obra literária infantil frente à máquina de escrever da sua típica cottage inglesa, lado a lado com uma cada vez maior bola de pratas de chocolate. Sempre que Dahl comia um, lá ia a prata juntar-se às suas antecessoras.

A obra de Dahl destaca-se pela sua inteligência, pelo seu profundo sentido de justiça, e por um surrealismo inerente, que se adapta como uma luva aos modos de pensar e imaginar de qualquer criança (pelo menos, das crianças das prósperas sociedades ocidentais). Charlie and the Chocolate Factory é um dos seus textos mais representativos. No conto, Dahl, um mestre do exagero poético, conta-nos como um menino muito, muito, mas mesmo muito pobre ganha o último de cinco bilhetes dourados para visitar a famosa e misteriosa fábrica de chocolate de Willy Wonka. Charlie é um rapaz sensível e sensato, sonhador e simpático, que vive com os pais e os avós num casebre ao fundo da avenida onde se situa a famosa fábrica de Wonka. Na família de Charlie, a pobreza é tanta que os quatro avós partilham todos a mesma cama, e a refeição habitual consiste numa sopa de couves. Amante de chocolate, Charlie é suficientemente sensato para saber poupar a única barra de chocolte Wonka (claro) que recebe anualmente como prenda de aniversário. Todas as noites, antes de adormeçer, Charlie entrevê as altas chaminés da fábrica e sonha com os deliciosos sabores dos maravilhosos chocolates criados por Wonka.

E que maravilhos sabores Wonka cria: And then again,' Grandpa Joe went on speaking very slowly now so that Charlie wouldn't miss a word, 'Mr Willy Wonka can make marshmallows that taste of violets, and rich caramels that change colour every ten seconds as you suck them, and little feathery sweets that melt away deliciously the moment you put them between your lips. He can make chewing-gum that never loses its taste, and sugar balloons that you can blow up to enormous sizes before you pop them with a pin and gobble them up. And, by a most secret method, he can make lovely blue birds' eggs with black spots on them, and when you put one of these in your mouth, it gradually gets smaller and smaller until suddenly there is nothing left except a tiny little pink sugary baby bird sitting on the tip of your tongue.' Grandpa Joe paused and ran the point of his tongue slowly over his lips. 'It makes my mouth water just thinking about it,' he said.. Maravilhas de açucar e confetti, delícias de genibre, mirtilo e cacau.

O espírito do livro é Willy Wonka, o maior dos chocolateiros, figura excêntrica maior que si própria, proprietário de uma misteriosa fábrica que parece funcionar sózinha. "Mr Wonka was standing all alone just inside the open gates of the factory. And what an extraordinary little man he was! He had a black top hat on his head. He wore a tail coat made of a beautiful plum-coloured velvet. His trousers were bottle green. His gloves were pearly grey. And in one hand he carried a fine gold-topped walking cane. Covering his chin, there was a small, neat, pointed black beard — a goatee. And his eyes — his eyes were most marvellously bright. They seemed to be sparkling and twinkling at you all the time. The whole face, in fact, was alight with fun and laughter. And oh, how clever he looked! How quick and sharp and full of life! He kept making quick jerky little movements with his head, cocking it this way and that, and taking everything in with those bright twinkling eyes. He was like a squirrel in the quickness of his movements, like a quick clever old squirrel from the park. Suddenly, he did a funny little skipping dance in the snow, and he spread his arms wide, and he smiled at the five children who were clustered near the gates, and he called out, 'Welcome, my little friends! Welcome to the factory!'". Apesar de toda a magia, Wonka é um ser profundamente solitário, que através de um simples concurso procura um herideiro para os seus segredos e para o seu império do chocolate. Mas não poderá ser um herdeiro qualquer: o seu herdeiro terá de perceber o chocolate, e o chocolate
é bom e não tem de fazer sentido...

Cinco crianças prototípicas descobrem os cobiçados bilhetes nas barras de chocolate: Augustus Gloop, um alemão obeso e ganancioso; Veruca Salt, uma princesinha inglesa caprichosa e estragada com mimos; Violet Beauregarde, uma daquelas crianças que tem sempre de ser a melhor em tudo o que faz; Mike Teavee, um irritante viciado em televisão; e o sensato e sensível Charlie. As quatro coloridas personagens personificam tudo o que há de mau num espírito infantil adulterado pela desatenção, estupidez ou cegueira dos adultos. E no palco fantástico das salas maravilhosas da fábrica de chocolate, cada uma destas crianças, bem como os seus pais, terá exactamente aquilo que merece. As profundas falhas de carácter são punidas exemplarmente, e a punição é perfeitamente ajustada ao tipo de carácter de cada criança: Gloop "afoga-se" num rio de chocolate, graças à sua ganância de querer comer sempre mais e mais; Beauregarde "transforma-se" numa bola de pastilha elástica gigante, graças à vontade de ser sempre a primeira a experimentar; Salt é "despachada" para dentro dos contentores de lixo, graças às contrariedades que cria por não gostar de ser contrariada; e Teavee descobre que o seu sonho é o seu pior pesadelo ao ficar "preso" dentro de um televisor. No final de cada exemplar execução (a comparação pode parecer violenta mas é precisamente isso que Wonka faz às crianças de mau carácter) são acompanhadas da bizarra variação do coro grego que são os oompa-loompas, os minúsculos trabalhadores da fábrica, que encerram cada castigo com um poema que anuncia a justa punição pela falha de carácter (nas tragédias gregas, o coro servia para contextualizar a acção em palco, e para anunciar ou reflectir sobre as acções dos personagens).

Só Charlie, inquisitivo mas compreensivo, sonhador mas sensato, consegue chegar ao fim da visita à fábrica de chocolate. As qualidades do seu carácter (não exagera, não exige, não é caprichoso, não é fútil, não é ganancioso) garantem-lhe o prémio final: ser herdeiro de Wonka, tornar-se dono de uma fábrica dos produtos que mais ama na vida, e livrar a família da pobreza abjecta em que vive.

Charlie and the Chocolate Factory é uma obra essencial de Dahl, repleta de uma profundidade difícil de encontrar na literatura infantil. Agora, quanto ao filme...

A realização de Tim Burton confere a Charlie and the Chocolate Factory o toque bizarro que é a assinatura típica de Burton. Que o filme valha pela história que conta não é uma conclusão a retirar. O livro já está publicado há várias décadas. A adaptação é razoávelmente fiel (à excepção do final, mas já lá vamos), mas o filme brilha nos cenários e nas vozes dos actores. Burton e as suas equipes de peritos em efeitos especiais excederam-se na criação de feéricos cenários que captam na perfeição o espírito aventureiro e maravilhoso de Charlie and the Chocolate Factory. Os actores realizaram um bom trabalho, dando vida a personagens pouco profundos (trata-se, enfim, de uma obra de literatura infantil) sem cair na tentação de exagerar as suas características. A excepção aqui é feita por Johnny Depp, que exagera intencionalmente na recriação contemporânea de um Willy Wonka profundamente inspirado em Michael Jackson (wacko jacko para os amigos). As vozes dos actores, profundamente britânicas, caem perfeitamente naquela imagem de conto infantil inglês, e são, quanto a mim, uma das delícias do filme. Uma das curiosidades deste filme pretensamente americano é a sua europeidade: realizado e produzido por americanos, é representado por actores europeus, e filmado nos muito europeus estúdios de Shepperton, ao lado de Londres. Mas só poderia ser assim; imaginem as vozes que dão vida a Charlie and the Chocolate Factory com aquele sotaque deslavado dos americanos. Outra curiosidade é a atenção dada aos cenários: na era do ecrã azul, dos fatos de captura de movimentos e dos cenários digitais, a tecnologia de animação é parcamente utilizada. Percebem-se alguns cenários digitais no início do filme, bem como nas cenas que envolvem o elevador, e percebe-se que a irreal replicação dos oompa-loompas (todos iguais, como clones) só poderia ter sido realizada graças às modernas técnicas de efeitos especiais digitais. Isto confere ao filme uma outra dimensão de maravilhoso, ao entrever o realimo dos cenários irreais. Talvez esta escolha de burton, para além de ser sua imagem de marca (Burton também realizou o fantástico Nightmare Before Christmas, totalmente realizado em claymation, a mais dura e difícil das técnicas de animação) se deva a algum realismo sobre o state of the art da animação digital. Possívelmente, o treinar de esquilos demora menos tempo do que a animação digital dos animaizinhos peludos.

Não duvido que o filme seja apaixonante, para qualquer criança que o veja. As crianças mais crescidas, especialmente as que conheçam o livro, ficarão um pouco desiludidas. Uma obra como Charlie and the Chocolate Factory é bizarra e apaixonante; a adaptação cinematográfica realça apenas o bizarro. Falta qualquer coisinha ao filme, um proverbial je ne sais quoi.

É facto assente e comprovado que os filmes têm de ter finais felizes, para agradar aos espectadores. Essa política norteia os financeiros de Hollywood que investem em cinema, e isso ajuda a explicar a terrível bastardização no final de Charlie and the Chocolate Factory. É no final do filme que a fidelidade ao livro se perde. Em vez de terminar de acordo com livro. No livro temos direito a um belo final, diga-se de passagem, em que os culpados vão para casa com mossas no ego e não no corpo, apesar dos suplícios que sofreram, e Wonka entrega alegremente a fábrica a Charlie, ajudando assim toda a família a sair da pobreza. Mas as americanices não permitem este tipo de finais. Em vez disto, os argumentistas reinventaram um final para Charlie and the Chocolate Factory que passa por uma rejeição liminar da família de Charlie por um Wonka tristmente afastado do pai, uma ajuda de Charlie para que Wonka recupere os laços com seu pai, e uns discursos ridículos sobre a importância da nossa família acima de tudo. Perfeitas lamechices. São legítimas, claro, e típicamente americanas, mas está muito errado alterar um texto como Charlie and the Chocolate Factory só para criar um final mais feliz, simplista e lamechas. Ainda por cima, o final afasta-se à velocidade da luz do estilo de prosa e do ideário de Charlie and the Chocolate Factory.

O problema é que na mente dos públicos, o que ficará indelévelmente gravado serão as imagens do filme, e não a história que o livro conta. Tim Burton, de créditos bem estabelecidos, não precisava de ter danificado o final de Charlie and the Chocolate Factory só para agradar a uns executivos de estúdio que não conseguem compreender a importância da fidelidade ao um texto, cegos como estão pela ganância do lucro astronómico. Havia de haver aí uns oompa-loompas dispostos a castigar Burton por isto.