domingo, 3 de abril de 2005

Requiem, II




Sem grandes surpresas, faleceu ontem o papa João Paulo II. A morte já era esperada. Desde quinta feira que os media faziam directos da praça de S. Pedro, transmitindo a agonia de um papa.

Realmente, não é todos os dias que temos a oportunidade de ver um papa a morrer.

Apesar de ser ateu (não sou agnóstico, sou mesmo ateu), eu não deixava de ter respeito pela figura do sumo pontífice, cardeal de roma. Ele era uma daquelas pessoas com magnetismo pessoal, que só pela sua presença (mesmo à distância) nos dava vontade de querer acreditar no que ele acreditava. Foi um papa curioso, com uma história de vida interessante (repetida ad nauseam em infindáveis filmes e biografias populares). Foi também um papa aparentemente polémico - defendeu a aproximação entre as diversas versões do catolicismo, e inclusivamente entre várias religiões, o que levantou algumas sobrancelhas no vaticano, embora as suas iniciativas interreligiosas nunca tivessem posto em causa a supremacia de Roma e do Vaticano, pedra fundamental do catolicismo romano. No fim de contas, com tantas religiões no mundo, qual é a que tem uma organização mais dogmática e centralizada? Com um papa, sumo pontífice, máxima autoridade espiritual, no topo da pirâmide?

Foi também durante este papado que se refroçou a disciplina interna da organização multinacional que é a igreja. Senhores padres, quem fala é o Vaticano. Não há vozes discordantes. Foi também um papado algo ambivalente, a apostar na juventude mas ao mesmo tempo a reforçar o conservadorismo da igreja. O carisma e apelo do papa junto dos jovens era algo de inexplicável e fascinante. Havia uma aura que nos atraía. Por outro lado, nunca um papa canonizou tantos santos. Foi responsável por um novo catecismo católico, e foi também responsável pela publicação de imensas encíclicas, documentos que regulamentam a filosofia da igreja católica. E favoreceu imenso a organização ultra conservadora que é a Opus Dei. Também é criticado pelas opções que tomou sobre o aborto (sem razão - esta religião nunca poderá defender o aborto) e sobre o uso de contraceptivos (e aqui se traiu a mentalidade ainda medieval da igreja católica).

No fundo, é natural que este papa seja contraditório. Um polaco culto, viu no tradicionalismo da igreja católica um pilar moral para que as pessoas a ele se possam agarrar, em tempos de crise. Este foi um papa do século XX, forjado nas fogueiras da II guerra mundial. Com a morte dele, também morre mais um pouco do século XX.

O que se segue? As cerimónias das exéquias, o anacronismo, para nós, dos tempos de democracia, que é o conclave dos cardeais, e a eleição de um novo papa. Um novo papa já forjado pelas forças que formaram o fim do século XX. Um papa para quem o nazismo, o comunismo, as posturas anticientíficas e o holocausto fazem parte da história. Será um papa forjado pelas forças da união europeia, pela pobreza abjecta que grassa no mundo, pela nova ordem mundial, pelo terrorismo, pelas catástrofes ambientais. Será, talvez, interessante, ver como é que a orgaização medievalista que é a igreja católica se adaptará a este novo mundo. Porque se há algo que a igreja para sempre deverá a João Paulo II, é o facto de este a ter colocado nos olhos do mundo. No fim de contas, o vaticano não tem qualquer importância. Apenas a constante presença do papa nos olhos do mundo, com as suas constantes viagens, lhe deram a importância moral que hoje tem.