quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Annie Bot


Sierra Greer (2024). Annie Bot. Nova Iorque: Mariner Books.

Durante a leitura deste livro, estavam constantemente a vir à minha mente dois contos clássicos: Olympia de ETA Hoffmann, e L'Éve Future de de le Isle-Adam. São dois textos dos primórdios da ficção científica, que estabaleceram em pleno século XIX a temática deste Annie Bot - o sonho masculino de ter a mulher como dócil, submissiva e sexualmente disponível, onde na impossibilidade das humanas incarnarem este desejo, recorre-se à ciência para construir a mulher-objeto, corolário destas fantasias masculinas. 

Mais comedidos, dada a sensibilidade dos tempos, Hoffmann  mostra-nos a paixão por um simulacro feminino cuja maior virtude é o seu silêncio distante, que enlouquece o protagonista, e Isle-Adam o protótipo mecânico de mulher doméstica perfeita, bela e servil. Greer vai mais longe, bem mais longe, e não tem medo de mergulhar na violência sexual e doméstica, nesta história de um amor desiquilibrado entre um homem e uma andróide consciente. A autora cruza as visões da robótica contemporânea, IA e consciência, e as fantasias sumbissivas masculinas num romance de FC near-future onde o foco está na forma como a tecnologia é instrumentalizada para perpetuar estereótipos e vícios sociais.

O livro centra-se na relação entre o personagem humano e a sua robot de companhia, uma andróide topo de gama que mimetiza a aparência e comportamento de uma mulher. A robot é um produto de mercado, de uma linha empresarial que vende robots de companhia sexual, criadas ou amas, em versões femininas ou masculinas. Para que a verisimilitude para com uma mulher real seja maior, os donos destes robots podem optar por ativar funções avançadas que simulam consciência. Estas funções são generativas, permitindo aos robots desenvolver um tipo de auto-consciência e autonomia com o tempo, evoluíndo de acordo com as suas experiências. 

A autora não se mete no terreno movediço das consciências artificiais, fica pela ideia que os algoritmos da robot a começam a tornar consciente, autónoma e questionadora da sua vida e realidade. É no confronto entre a personalidade sintética que se desenvolve e as ações do seu dono humano que reside o conflito motor do livro. É de notar, culminando num pormenor que possibilita o final feliz à história, que Greer está atenta às incoerências das consciências virtuais num sistema subordinado âs vontades dos seus donos. Até aos últimos momentos percebemos o conflito entre uma personalidade autónoma, mas que corre sobre algoritmos de obediência, onde basta um comando para travar autonomias e subjugar as ações. A autonomia está sempre a um botão de distãncia de ser desligada, e os donos podem sempre optar por reverter as personalidades das robots de companhia, se estas evoluírem de formas que lhes desagradem. Há aqui uma metáfora social sobre ideias arreigadas, que muitas vezes impedem as vítimas de violência doméstica de se libertar do ciclo abusivo, também. 

Aliás, por dentro da casca da ficção científica, todo o livro é uma pouco subtil metáfora que aborda esta temática. Abuso, dominação numa relação, as frustrações do homem que se espelham no destratamento físico e emocinal da mulher, as manipulações emocionais, o oscilar entre o amor e sentimento à raiva, a afirmação possessiva sobre a pessoa, considerada um objeto. Mesmo que nesta história a pessoa, a vítima, seja mesmo um objeto, um mecanismo avançado que ao simular consciência, talvez esteja mesmo a tornar-se consciente.

Annie Bot surpreende, pela forma como não tem medo de usar a ficção científica para abordar temas socialmente complexos. Brinca, muito a sério, com a fetishização do corpo feminino e os velhos sonhos de mulheres submissas. Toca na inteligência artificial, nas visoes utópicas e sociais da robótica, numa leitura de metáforas bastante visíveis.